Milícias não são uma questão temporária de segurança pública; elas fazem parte da máquina política e vieram para ficar
Preocupação global com ação de grupos criminosos organizados na eleição brasileira deste ano ignora a longa história de violência política, troca de favores e clientelismo no país, com presença frequente de coronéis e ação de milícias, esquadrões da morte e grupos de extermínio
Preocupação global com ação de grupos criminosos organizados na eleição brasileira deste ano ignora a longa história de violência política, troca de favores e clientelismo no país, com presença frequente de coronéis e ação de milícias, esquadrões da morte e grupos de extermínio
Por Nicholas Pope*
A preocupação dos observadores democráticos com as ameaças às eleições de 2 de outubro por grupos criminosos organizados em todo o Brasil está em pleno andamento há meses. Já em fevereiro, a Organização dos Estados Americanos (OEA) enviou um relatório ao Tribunal Superior Eleitoral do Brasil expressando preocupação com as condições de medo e intimidação que impedem candidatos e eleitores de exercerem liberdades políticas, pessoalmente e em espaços digitais.
Desde que os políticos embarcaram na campanha eleitoral, reportagens da mídia e artigos de opinião expressaram preocupações sobre a influência do crime organizado na política eleitoral, alegando que a interferência é uma afronta à democracia e às liberdades políticas dos cidadãos. Isso é verdade, é claro, quando a democracia liberal é o objetivo.
Mas muitos desses relatórios poderiam ter sido executados e repetidos em qualquer ano eleitoral anterior, sugerindo que a situação não está mudando muito no momento atual. ‘Grupos criminosos organizados’ ligados ao poder político –especificamente, grupos armados com aliados em posições de poder dentro do Estado e sistemas militares, como milícias, esquadrões da morte, grupos de extermínio e outros homens fortes violentos– compraram votos e ameaçaram moradores no dia da votação por décadas.
As eleições são, sem dúvida, momentos importantes na política. E a indignação com a interferência e violência nos meios de comunicação durante os períodos eleitorais se justifica para tentar salvaguardar os eventos eleitorais. Mas as eleições são apenas a ponta de um iceberg político muito maior. Devemos também prestar atenção em como o poder e o controle são exercidos de forma sustentada e cotidiana entre os eventos eleitorais.
Vinho velho, garrafas novas
A realidade política do Brasil deve ser compreendida no contexto de longa história de violência, trocas de favores e relações clientelistas.
Desde a fundação da República em 1889, as instituições políticas do Brasil contam com a violência para que a política cotidiana funcione. Isso é especialmente verdadeiro em regiões rurais ou de difícil acesso –favelas e províncias rurais– onde as instituições do Estado central não têm capacidade (ou vontade) de agir, monitorar e responder às demandas de a população.
Em vez disso, homens fortes e grupos armados locais –geralmente conhecidos como coronéis– têm sido características comuns nessas regiões, muitas vezes com a intenção de influenciar os resultados políticos.
Na Zona Oeste do Rio de Janeiro, na década de 1930, o ‘Grupo Triângulo’ (um grupo de coronéis das paróquias de Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba) era conhecido por seus opositores políticos como uma ‘força misteriosa’ que usava a coerção para reunir enormes número de votos, muitas vezes alcançando mais de 90% de apoio. Ecoando as ações de Tenório Cavalcanti (o ‘Homem da Capa Preta’) na Baixada Fluminense, essas formas violentas de fazer política foram comuns no nordeste do Brasil por muitos anos.
Durante as décadas de 1980 e 1990, a polícia mineiraem Rio das Pedras e os irmãos Guimarães em Campo Grande operaram com modelo semelhante. Eles exerceram força política, primeiro fornecendo segurança e protegendo a comunidade, e depois tornando suas populações locais dependentes deles social, política e economicamente.
Esses modelos também foram encontrados em São Paulo, onde a Guarda Municipal em Sorocaba foi considerada culpada de torturar moradores e trabalhar como milícias.
Embora as cidades do Sudeste recebam a maior parte da atenção dos jornalistas que relatam o ‘crime organizado’, essas políticas violentas são comuns em todo o Brasil, embora sob diferentes formas e nomes.
Na Amazônia, organizações privadas de ‘segurança’ pagas por grupos ilegais de mineração, máfias de pesca e caçadores de animais selvagens protegem e facilitam atividades ilícitas e reprimem defensores ambientais, povos indígenas e jornalistas que se manifestam contra as atividades de destruição de terras. Nos estados de Goiás e Tocantins, no Centro-Oeste, o agronegócio trabalha em estreita colaboração com esquadrões da morte e milícias para reprimir a resistência ao uso de agrotóxicos. Nas periferias de Belém e Manaus, policiais clandestinos enquanto milícias reivindicam reprimir o narcotráfico, mas acabam reprimindo liberdades políticas.
Esses são tipos modernos de coronelismo que determinam como as regiões rurais, periféricas e remotas são gerenciadas, garantindo que haja alguém com alguns vínculos ou conexões com o estado gerenciando e monitorando essas regiões remotas.
Segurança pública, desenvolvimento e soluções
As relações entre os coronéis e o sistema político formal são difíceis de definir. Na maioria das vezes, esses relacionamentos estão nas sombras, fora da vista (e da mente) para aqueles que não experimentam diretamente seu controle e influência. Mas esses arranjos sustentam o funcionamento da política e da economia nos níveis local, estadual e nacional.
Eles são a forma básica de governança para regiões que sofrem pressões para extrair recursos, urbanizar rapidamente para atender às demandas do crescimento populacional e atender a essas populações com serviços públicos. Exemplos desses mercados incluem mineração e desmatamento, habitação, infraestrutura, fornecimento de água, gás e eletricidade. Mas eles também mostraram uma vantagem com sua agilidade e capacidade de prestar serviços em momentos de crise em que os Estados são muito complicados para agir rapidamente ou não têm recursos para apoiar a população (ou seja, durante a pandemia de Covid-19 ).
Esses grupos podem passar despercebidos pela responsabilidade e transparência e realizar atividades ilícitas e violentas em nome de políticos e funcionários do Estado. Isso tem enormes ramificações para o momento contemporâneo global em que o desenvolvimento cuidadoso e sustentável deve ser a prioridade do dia. Em vez disso, forças geopolíticas e uma crise global de energia estão aumentando a pressão para que os mercados extraiam recursos naturais e produzam energia para vender no mercado global. Esses coronéis estão à disposição para facilitar esses processos.
Mas, ao assumir responsabilidades em regiões marginais, esses grupos também conseguiram entrar na porta política e econômica e monopolizar atividades locais e lícitas, incluindo tributação e segurança. Com o tempo, isso permitiu que esses grupos consolidassem seu próprio apoio econômico, político e social, em vez de trabalhar em nome de outros.
Entretanto funcionários leais do estado com aspirações por uma forma mais liberal de democracia tendem a negar a importância dos coronéis para a sobrevivência do Estado e da economia. O ex-ministro da Defesa e Segurança Pública, Raul Jungmann, por exemplo, afirmou que democracia e milícias são incompatíveis: “Quanto maior a presença da milícia e quanto mais ela se associa, se apropria e captura órgãos do Estado, menos democracia, menos liberdade, menos segurança e mais mortes”.
Mas a visão de Jungmann, como muitas outras, ignora como esses grupos armados coexistiram confortavelmente com operadores estatais –e, em muitos casos, foram as razões pelas quais esses operadores tiveram tanto sucesso ao longo dos anos. Uma versão brasileira da democracia se desenvolveu com e por causa dos coronéis, não apesar deles.
É claro que isso não quer dizer que não se pode –e não se deve– haver ambições para corrigi-la. Mas deve partir de uma compreensão dos coronéis e seu papel central no momento contemporâneo pelo que é, e não pelo que alguns gostariam que fosse.
*Nicholas Pope é pesquisador de pós-doutorado no Brazil Institute e no Departmento de Estudos da Guerra no King’s College London
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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