24 novembro 2025

Nova York após Mamdani – Ruído simbólico, limites institucionais

A eleição de Zohran Mamdani para a prefeitura de Nova York, no início de novembro, é um fato politicamente ruidoso e institucionalmente contido.  Ruidoso porque projeta na maior cidade judaica da diáspora um líder que se afirma socialista democrático, apoia o movimento BDS e prometeu “aumentar o volume” no debate público sobre Israel e Palestina.  […]

Foto: Instagram/zohrankmamdani

A eleição de Zohran Mamdani para a prefeitura de Nova York, no início de novembro, é um fato politicamente ruidoso e institucionalmente contido. 

Ruidoso porque projeta na maior cidade judaica da diáspora um líder que se afirma socialista democrático, apoia o movimento BDS e prometeu “aumentar o volume” no debate público sobre Israel e Palestina. 

Contido porque prefeitos não fazem política externa dos Estados Unidos: não assinam tratados, não alteram assistência militar nem decidem o voto dos EUA na ONU. 

A realidade nova-iorquina costuma premiar quem entrega serviço básico, segurança, transporte, aluguel, mas a simbologia em torno de Israel e do judaísmo tornou-se um eixo de mobilização nacional, e é nesse plano discursivo e institucional local que o impacto mais sensível se dará. 

Mamdani foi eleito aos 34 anos, primeiro muçulmano a comandar a cidade, após derrotar Andrew Cuomo (independente) e Curtis Sliwa (republicano) em uma disputa nacionalizada desde o primeiro dia.

‘A prefeitura de Nova York dispõe de três alavancas com potencial de reverberar sobre Israel e a vida judaica na cidade’

Comecemos pelo alcance real do cargo. A prefeitura dispõe de três alavancas com potencial de reverberar sobre Israel e a vida judaica na cidade. A primeira é retórica e simbólica: tribuna, protocolos de recepção a autoridades, linguagem oficial diante de crises. 

Aqui, Mamdani já sinalizou confrontação: ainda candidato, disse que a cidade deveria “cumprir” um eventual mandado do Tribunal Penal Internacional contra Benjamin Netanyahu, uma promessa de forte efeito performativo, mas juridicamente impraticável em razão dos limites constitucionais e da posição histórica dos EUA em relação ao TPI. A proposta foi criticada por especialistas e por Netanyahu, e ilustra como o debate com Israel será travado sobretudo no plano da linguagem e da marcação de posição, e não na eficácia de políticas externas que a prefeitura, por definição, não controla.

A segunda alavanca é segurança e combate a crimes de ódio, tema que mais toca a vida concreta de judeus nova-iorquinos. Em maio, a gestão Eric Adams criou a Mayor’s Office to Combat Antisemitism e instituiu por ordem executiva uma estrutura dedicada à prevenção, monitoramento e resposta ao antissemitismo, integrando-a ao Office for the Prevention of Hate Crimes. O teste imediato para Mamdani é orçamentário e operacional: manterá e expandirá esses mecanismos? Haverá compromisso explícito e simétrico contra antissemitismo e islamofobia? As respostas são mensuráveis, em dotações, indicadores de crimes de ódio e tempos de resposta e, do ponto de vista comunitário, valem mais que qualquer post em rede social.

‘A pauta do desinvestimento costuma emergir a cada ciclo de tensão. Mamdani defendeu encerrar investimentos municipais em Israel Bonds e apoia o BDS; porém, a arquitetura institucional limita o alcance dessa agenda’

A terceira frente envolve poupança pública e fundos de pensão. A pauta do desinvestimento costuma emergir a cada ciclo de tensão. Mamdani defendeu encerrar investimentos municipais em Israel Bonds e apoia o BDS; porém, a arquitetura institucional limita o alcance dessa agenda. 

Nova York tem cinco fundos, com conselhos plurais, e mesmo aliados críticos de Israel admitem que o prefeito “não tem os votos” para impor um desinvestimento amplo. Além disso, desde 2016 vigora no nível estadual a Executive Order 157, que orienta o Estado de Nova York a restringir negócios com entidades que apoiem BDS, um arranjo que, ainda que contestado por organizações civis, cria barreiras políticas e jurídicas à ação isolada da prefeitura. 

Em suma: haverá disputa e headline; não há “botão mágico” para desinvestimento geral. 

‘É nesse cruzamento entre símbolo e engrenagem local que se mede o impacto sobre Israel e os judeus’

É nesse cruzamento entre símbolo e engrenagem local que se mede o impacto sobre Israel e os judeus. Do lado diáspora/comunidade, a eleição acentua uma fratura geracional e programática já visível: parte do eleitorado judeu, especialmente mais jovem e progressista, enxerga em Mamdani um aliado em pautas de custo de vida e direitos civis e separa, de modo mais assertivo, crítica a governos israelenses de pertença judaica; outra parcela lê suas posições como antissionistas e ameaça existencial. 

Reportagens recentes mapearam esse choque de expectativas em sinagogas, organizações e fóruns públicos. Não surpreende que entidades como o American Jewish Committee tenham se antecipado com cartas abertas; e que, no outro extremo, surjam iniciativas para “vigiar” o gabinete do prefeito eleito, sinais de um período de pressão organizada, mas também de institucionalização do diálogo. 

Para o interesse comunitário, o que importa é menos a batalha do rótulo (“sionista” vs. “antissionista”) e mais a capacidade da prefeitura de reduzir vulnerabilidades concretas: proteger escolas e sinagogas, responder a incidentes sem ambiguidade e isolar extremistas de qualquer espectro.

‘Do lado EUA–Israel, a repercussão é sobretudo discursiva’

Do lado EUA–Israel, a repercussão é sobretudo discursiva. Prefeitos não mexem em F-35 nem em vetos no Conselho de Segurança, mas posicionamentos como “cumprir” mandados do TPI ou advogar desinvestimentos municipais alimentam a maré dentro do Partido Democrata, pressionando moderados e oferecendo vitrine a ativismos pró-Palestina e pró-Israel. 

Em termos práticos, a relação bilateral se mede no Capitólio e na Casa Branca; em termos reputacionais, Nova York dita clima. 

A eleição de Mamdani já gerou reações de Trump e de Netanyahu, sugerindo que a cidade seguirá sendo palco de uma disputa nacional que usa Israel como linguagem de diferenciação partidária. O risco, para todos os lados, é que essa disputa transborde para políticas públicas locais e produza efeitos contraproducentes na segurança e na coesão social.

Em paralelo, é importante evitar tanto a euforia quanto o pânico.

Euforia, porque não há evidência de que a prefeitura vá (ou possa) “reorientar” a política dos EUA para Israel. Pânico, porque parte substantiva do que Mamdani promete depende de coalizões e votos em conselhos que historicamente operam por consenso. O caso dos fundos de pensão é emblemático: análises de imprensa especializada indicam vulnerabilidade pontual em dois dos cinco fundos; ainda assim, a avaliação corrente é que faltariam votos para um giro brusco. 

‘Uma dimensão pedagógica que esta eleição explicita para quem observa de fora: a vida judaica na diáspora não é monolítica e se reconfigura em sociedades pluralistas onde identidades múltiplas, judaicas, muçulmanas, seculares, convivem e disputam legitimidade’

Há, por fim, uma dimensão pedagógica que esta eleição explicita para quem observa de fora: a vida judaica na diáspora não é monolítica e se reconfigura em sociedades pluralistas onde identidades múltiplas, judaicas, muçulmanas, seculares, convivem e disputam legitimidade.

Em Nova York, a régua decisiva continuará sendo a capacidade de a prefeitura entregar segurança e previsibilidade a todos, sem hierarquizar sofrimento nem relativizar ódio. 

Se Mamdani desejar governar para a cidade real, e não para os recortes das redes sociais, terá de provar, em atos e orçamento, que sua crítica a políticas de um governo estrangeiro não se converte em licenças para o antissemitismo local. 

Essa prova não se dá em um post; mede-se em escolas seguras, em números de ocorrências e na firmeza com que sua equipe responde a quem atravessar linhas civis. 

O resto, inclusive a disputa permanente por metáforas sobre Israel, continuará sendo ruído. E ruído, em Nova York, nunca faltou.

Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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