26 agosto 2024

O bicentenário ofuscado

A celebração de 200 anos das relações Brasil-EUA é significativa, mas não é tão profunda ou tão importante quanto poderia ser. Uma parceria genuína que abranja a sociedade civil, as relações de Estado para Estado e a política não foi construída. Um envolvimento mais amplo e eficaz com o Brasil por parte dos Estados Unidos continua a ser ilusório

EUA recebem estudantes brasileiros para intercâmbio em celebração dos 200 anos de relações diplomáticas entre os dois países (Foto: Embaixada dos EUA em Brasília/Domínio Público)

Em 2024, houve inúmeras comemorações do bicentenário do reconhecimento da independência do Brasil pelos Estados Unidos. Isso proporcionou uma oportunidade para relembrar os altos e baixos das relações Brasil-EUA e especular sobre seus possíveis futuros. Também levantou a questão de saber se o bicentenário deve ser motivo de celebração e, em caso afirmativo, o que deve ser celebrado. Neste artigo, gostaria de distinguir entre as relações Brasil-EUA no nível da sociedade civil, do Estado e dos movimentos políticos, e argumentar que mais aspectos positivos podem ser extraídos do primeiro nível do que dos segundo e terceiro.

É correto, como argumenta Rubens Barbosa, que o reconhecimento formal da independência do Brasil pelos EUA só ocorreu em 1825. Portanto, o próximo ano seria o ano certo para comemorar o bicentenário. No entanto, a precisão histórica nem sempre prevalece quando se trata de comemorações. A visão convencional de que este é o ano do bicentenário prevaleceu.

‘Onde as relações Brasil-EUA prosperaram foi no âmbito da sociedade civil’

Onde as relações Brasil-EUA prosperaram foi no âmbito da sociedade civil. Provavelmente é seguro dizer que, em nenhum momento da história, tantos brasileiros souberam tanto sobre os Estados Unidos, e tantos cidadãos americanos estiveram familiarizados com o Brasil. Isso vai muito além dos estimados 1,5 milhão de turistas brasileiros que visitaram os Estados Unidos em 2023 e dos 668.500 cidadãos americanos que visitaram o Brasil no mesmo ano. Também transcende a importância da diáspora brasileira e brasileiro-americana nos Estados Unidos, a maior do mundo. 

Isso inclui conhecimento compartilhado e cooperação em áreas como música, cinema, arquitetura, capoeira, futebol, meio ambiente, ciência e tecnologia, ensino superior, direitos indígenas, igualdade racial, relações de gênero, e até áreas esotéricas, como a presença brasileira no circuito de montaria em touros nos rodeios dos Estados Unidos. Mesmo que a relação da sociedade civil seja geralmente assimétrica – com mais interesse e conhecimento dos EUA no Brasil do que vice-versa – ela é vibrante e intensa.

O Brasil e os Estados Unidos têm sociedades grandes, complexas e em processo de rápida transformação no hemisfério ocidental, compartilhando muitas experiências históricas e contemporâneas. Muitos membros de suas respectivas sociedades civis consideram natural olhar para o outro em busca de novas perspectivas, melhores práticas, apoio e inspiração, e essa interação, facilitada pela queda nos custos de comunicação e viagem, aumentou significativamente nos últimos anos. Embora os governos possam incentivar e canalizar essa interação, a maior parte ocorre sem uma aprovação oficial, criando comunidades de famílias, organizações e interações que unem as duas nações.

‘Os EUA ocupam uma posição estrutural na ordem global distinta da do Brasil, uma potência média cuja importância regional tem relevância global apenas em algumas áreas políticas específicas’

A mutualidade e a reciprocidade percebidos nas sociedades civis são menos comuns nas relações entre Estados. Os Estados Unidos, uma superpotência militar com interesses globais, ocupam uma posição estrutural na ordem global distinta da do Brasil, uma potência média cuja importância regional tem relevância global apenas em algumas áreas políticas específicas, como mudança climática e conservação ambiental.

À medida que o mundo se tornou mais geopoliticamente dividido, os gestores estatais nos EUA e no Brasil foram lembrados de suas diferentes perspectivas sobre questões como as guerras na Ucrânia e Gaza e a influência econômica da China na América Latina e no Caribe. 

A tradição diplomática do Brasil não é se alinhar automaticamente com os Estados Unidos (uma tradição apenas brevemente desconsiderada durante o governo Bolsonaro de 2019-2022), e as declarações e ações do Itamaraty nos fóruns globais frequentemente o tornam um contrapeso – mas raramente um oponente declarado – dos EUA. A resposta cautelosa do Brasil e da Colômbia ao que parece ter sido a fraude eleitoral do regime Maduro na Venezuela em 2024 é um exemplo disso. Esta resposta foi pedir a divulgação dos resultados eleitorais das mesas de votação e recusar reconhecer a legitimidade do resultado eleitoral oficial.

‘Embora a busca brasileira por autonomia em suas relações internacionais tenha frequentemente irritado os formuladores de políticas dos EUA, isso também gerou importantes trocas e debates’

Embora a busca brasileira por autonomia em suas relações internacionais tenha frequentemente irritado os formuladores de políticas dos EUA em Washington, que estão mais confortáveis com a subordinação de alguns dos Estados latino-americanos menores, isso também gerou importantes trocas e debates. 

Os gestores estatais brasileiros tendem a ver o movimento em direção à multipolaridade como benigno. Eles consideram o papel do Brasil em instituições multilaterais (como sua presidência do G20, que levará a uma cúpula no Brasil em novembro) como positivo em áreas como desigualdade econômica, conservação da biodiversidade e combate à pobreza e à fome, e desejam que essas contribuições sejam reconhecidas. 

A visão dos EUA sobre a China como um adversário estratégico, e seu aparente desejo de bloquear o ascenso econômico da China, entram em conflito com uma abordagem brasileira dos assuntos mundiais que está mais confortável com o pluralismo, a ambiguidade e o afastamento da hegemonia dos EUA, uma abordagem que não está convencida da correção intrínseca de cada posição dos EUA.

Se as relações de Estado para Estado entre o Brasil e os Estados Unidos são, por vezes, conflituosas, mas essencialmente gerenciáveis, nem que seja porque os dois Estados ocupam posições estruturalmente tão distintas na ordem global, é no domínio da política cotidiana que o potencial de volatilidade e um alto grau de divergência são mais possíveis. 

‘Se Trump vencer a eleição, isso fortaleceria a Lula e tornaria as relações Brasil-EUA mais difíceis. Da mesma forma, se Kamala Harris vencer e um bolsonarista for eleito no Brasil em 2026, tensões entre os dois governos seriam prováveis’

Se Donald Trump conquistar novamente a Presidência dos Estados Unidos em 2024, isso energizaria e fortaleceria a oposição bolsonarista ao governo Lula no Brasil e tornaria as relações Brasil-EUA mais distantes e mais difíceis. Da mesma forma, se a atual vice-presidente Kamala Harris vencer a presidência em 2024 e um candidato bolsonarista vencer a presidência do Brasil em 2026, tensões entre os dois governos seriam prováveis. 

Às vezes, parece que os ciclos políticos nos Estados Unidos e no Brasil seguem cursos semelhantes em cronogramas ligeiramente diferentes, com as eleições de Trump e Bolsonaro em 2016 e 2018, respectivamente, assim como os ataques de 6 de janeiro de 2021 em Washington e 8 de janeiro de 2023 em Brasília separados pelo mesmo intervalo de dois anos, mas exibindo semelhanças que foram intensificadas por laços políticos transnacionais.

No entanto, apesar da turbulência superficial, as relações políticas entre o Brasil e os Estados Unidos são marcadas por algumas constantes. Ambos os principais partidos políticos nos EUA se apegam a mitos que tornam difícil um diálogo político genuíno e uma colaboração entre os dois países. Isso pôde ser visto nos discursos na Convenção Nacional Republicana de 15 a 18 de julho de 2024 em Milwaukee e na Convenção Nacional Democrata de 19 a 22 de agosto de 2024 em Chicago. 

Um desses mitos é o excepcionalismo americano, a ideia de que os Estados Unidos são o único país no mundo onde ocorre mobilidade social e o único país onde o “sonho americano” (em sua forma mais crua, a acumulação de imensa riqueza) pode ser realizado. Outro é a ideia de que os Estados Unidos são o único Estado indispensável no mundo e, porque representam valores que se presumem os melhores na ordem global, incluindo democracia liberal, direitos humanos e uma forma justa e aberta de capitalismo, sua hegemonia e unilateralismo, incluindo intervenção militar, devem ser aceitos como um elemento intrínseco e incontestado nessa ordem.

Desnecessário dizer que essas ideias, incluindo a ideia de que os EUA agem em defesa de valores universais e não de seus próprios interesses, são vistas com ceticismo fora dos próprios Estados Unidos, e especialmente no que é conhecido como o Sul Global. Isso inclui o Brasil, tanto dentro do aparato estatal quanto na sociedade civil. 

É provável que os EUA, sobrecarregados por imensos défices orçamentais e comerciais, continuem o seu declínio relativo nos assuntos mundiais. Ao fazê-lo, é provável que se insurja cada vez mais contra a “ordem internacional baseada em regras” que ela própria foi instrumental para criar. Isso colocará problemas delicados para os formuladores de políticas brasileiras, que enfrentarão escolhas difíceis entre aplacar os EUA, por um lado, e defender as instituições internacionais, por outro. Como escreveu recentemente o ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown, “É importante salientar que os EUA, que agiram multilateralmente quando tínhamos uma ordem unipolar, têm agora de compreender que não podem agir unilateralmente numa ordem multipolar.”

‘Republicanos e democratas acham que o resto do mundo importa apenas na medida em que afeta os Estados Unidos. Fazer com que Washington leve o Brasil a sério é difícil nos melhores momentos, mas em um ano de eleição presidencial, as tendências introspectivas e provincianas dos Estados Unidos são exacerbadas’

Uma terceira ideia compartilhada pelos partidos Republicano e Democrata nos EUA, e exibida em suas respectivas convenções nacionais, é que o resto do mundo importa apenas na medida em que afeta os Estados Unidos. Fazer com que Washington leve o Brasil a sério é difícil nos melhores momentos, mas em um ano de eleição presidencial, as tendências introspectivas e provincianas dos Estados Unidos são exacerbadas. 

O fato de o bicentenário do reconhecimento da independência do Brasil pelos EUA estar sendo comemorado em um ano como este é lamentável para aqueles nos EUA que sonham com uma conexão mais ampla e significativa entre os dois países.

Para concluir, o bicentenário deste ano é significativo, mas não é tão profundo ou tão importante quanto poderia ser. Uma parceria genuína que abranja a sociedade civil, as relações de Estado para Estado e a política não foi construída. Um envolvimento mais amplo e eficaz com o Brasil por parte dos Estados Unidos continua a ser ilusório. Por essa razão, vamos erguer um brinde ao bicentenário e deixar uma celebração mais entusiástica para o futuro.

É diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center da Florida International University, professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London e membro sênior da Canning House

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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