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Interesse Nacional
17 junho 2024

O Brasil é líder em liderança?

A intuição de Lula levou o Brasil à beira de um novo estilo de liderança na comunidade internacional que poderia impulsionar o tipo de colaboração necessária para resolver grandes desafios internacionais. Para ser eficaz, o discurso deve ser acompanhado por grandes mudanças na abordagem tática do Brasil sobre as relações exteriores

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa durante a abertura do Debate Geral da 78º Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Lula claramente deseja se posicionar, e posicionar o Brasil, como líder internacional, o que podemos rotular como um líder transformacional. Para muitos comentaristas, bem como para funcionários dentro do Itamaraty, essa é uma ambição quase absurda, que ameaça criar expectativas irrealistas e prejudicar desnecessariamente relações existentes. De fato, se confiarmos em modelos tradicionais de teoria das relações internacionais, essas críticas fazem muito sentido. Mas talvez Lula esteja percebendo algo, instintivamente pensando além dos limites estreitos dos planejadores de política externa da velha escola.

Pergunte a qualquer estudante de graduação em relações internacionais o que é liderança e eles responderão: poder. Segundo o pensamento dominante, líderes fazem com que outros façam coisas que, de outra forma, não escolheriam fazer. 

A abordagem realista, que domina a maioria dos ministérios das relações exteriores, foca na aplicação ou ameaça de força, seja militar ou econômica. Liberais falam sobre usar instituições para restringir ações, enquanto construtivistas vão um passo além para observar como normas são formadas e manipuladas para avançar agendas internacionais e restringir o que pode ser imaginado.

‘As abordagens teóricas convencionais de RI veem a liderança como algo imposto aos outros, mas este simplesmente não é o modus operandi do Brasil’

As abordagens teóricas convencionais de RI veem a liderança como algo imposto aos outros. A ênfase está na capacidade e vontade do “líder” de fazer com que os outros cumpram sua vontade ou de criar um cenário de risco e custo tão avassalador que a não conformidade se torne simplesmente cara demais. Por mais que críticos em toda a América do Sul – particularmente na Bolívia e no Paraguai – possam reclamar, este simplesmente não é o modus operandi do Brasil.

O problema com as abordagens centradas na coerção na teoria de RI é que elas são construídas a partir de um conjunto de dados históricos onde ocupação física e conquista eram uma parte essencial dos assuntos internacionais. 

Antigamente, se você quisesse grande acesso aos recursos ou mercados de outro país, geralmente tinha que conquistar o território ou ameaçar seus governantes a tal ponto que eles assumissem um papel próximo ao de vassalos subjugados. 

Essas abordagens maximalistas eram necessárias porque os planejadores econômicos pensavam amplamente em termos endógenos. Sim, havia comércio internacional, mas era dominado pelo fluxo de matérias-primas em uma direção e bens acabados na outra. As cadeias de valor modernas simplesmente não faziam parte do cenário.

‘A transnacionalização dos mercados de capitais e uma drástica redução nas barreiras comerciais tornaram mais fácil comprar acesso a recursos e mercados do que executar uma invasão’

A realidade de hoje é muito diferente. Os milagres da logística moderna distribuíram globalmente os processos de produção através de complexas cadeias de valor. Isso foi acompanhado por uma transnacionalização dos mercados de capitais e uma drástica redução nas barreiras comerciais a tal ponto que é mais fácil comprar acesso a recursos e mercados do que executar uma invasão. 

Se algo mudou, foi o elemento coercitivo, que se afastou do estado individual nos assuntos globais para a estrutura do sistema internacional; os custos de exclusão dos mercados mundiais agora são tão altos que poucos governos estão dispostos a perseguir ações coercitivas que possam arriscar a exclusão de sistemas comerciais essenciais.

‘Precisamos de novas formas de pensar sobre liderança nas relações internacionais’

Tudo isso significa que precisamos de novas formas de pensar sobre liderança nas relações internacionais. Um campo útil para procurar insights é o de estudos de gestão, particularmente o trabalho de James MacGregor Burns.

Em seu livro seminal Leadership, Burns escreve: “a liderança compartilha com o poder a função central de alcançar um propósito… Líderes não obliteram os motivos dos seguidores, embora possam despertar certos motivos e ignorar outros.” O foco em alcançar um objetivo é o insight central porque permite que as ambições sejam formuladas de maneira coletiva e inclusiva, não simplesmente extrativa e exploradora.

Construindo sobre as ideias de Burns, Tomas Chamorro-Premuzic, da Universidade de Columbia, argumenta em Why Do So Many Incompetent Men Become Leaders? que os líderes mais eficazes em organizações modernas tendem a ser menos focados na hierarquia e, em vez disso, enfatizam a cooperação, colaboração e a valorização mútua. As ambições e desejos do líder certamente não são negligenciados; ao contrário, a abordagem é alcançá-los avançando a equipe, não apenas o indivíduo no comando.

Se olharmos para a política externa brasileira durante as duas primeiras presidências do PT, este é precisamente o modelo que emergiu da intuição de Lula. Embora Lula certamente tenha exercido pressão sobre parceiros regionais, esse tipo de comportamento foi uma exceção à sua norma. Os esforços foram dedicados a gerar adesão para visões transformacionais como a Unasul ou a expansão e proliferação de vínculos políticos e econômicos Sul-Sul. 

De fato, a natureza transformadora e inclusiva da liderança brasileira de 2003-2010 foi reiterada inúmeras vezes por funcionários do governo e líderes empresariais que entrevistei na América do Sul e na África nos anos 2010.

‘Líderes devem estar dispostos a tomar decisões e investir recursos políticos e econômicos para implementar as movimentações táticas necessárias para alcançar os objetivos estratégicos’

No entanto, há mais nesse novo estilo de liderança do que simplesmente incluir os outros. Os gurus da gestão são claros que, embora nenhum líder sensato vá deliberadamente buscar conflito, quando ele se torna inevitável, também não é algo que um líder responsável irá evitar. Outra forma de expressar isso é que os líderes devem estar dispostos a tomar decisões e investir recursos políticos e econômicos para implementar as movimentações táticas necessárias para alcançar os objetivos estratégicos.

A realidade por trás das ambições declaradas da política externa do Brasil, e particularmente as do terceiro mandato de Lula, é a liderança transformadora. De fato, uma agenda de liderança transformadora oferece consideravelmente mais espaço para ação porque, por sua própria natureza, foca no avanço de objetivos mutuamente acordados e na satisfação das necessidades de alto nível daqueles englobados pelo projeto. 

‘O Brasil um líder eficaz no Sul Global porque está levando os seguidores aonde eles querem ir e ajudando-os a chegar lá’

Isso é precisamente o que tornou o Brasil um líder tão eficaz na América do Sul e em todo o Sul Global: o Brasil é seguido porque está levando os seguidores aonde eles querem ir e ajudando-os a chegar lá, não apenas oferecendo uma recompensa pontual.

Essa, pelo menos, tem sido a proposta de Lula.

A intuição de Lula levou o Brasil à beira de um novo estilo de liderança na comunidade internacional que poderia impulsionar o tipo de colaboração necessária para resolver grandes desafios internacionais, desde o colapso democrático até a mudança climática global. Mas a intuição levará Lula e o Brasil apenas até certo ponto. Para ser eficaz, o discurso de Lula sobre liderança estratégica transformadora deve ser acompanhado por grandes mudanças na abordagem tática do Brasil sobre as relações exteriores.

Especificamente, a reticência histórica do Itamaraty sobre potenciais desacordos precisa ser deixada de lado. Conflitos, quando inevitáveis, não são algo a ser evitado, mas sim abraçados como um evento a ser explorado para avançar ainda mais o projeto maior e legitimar a liderança. 

‘O Brasil deve reconsiderar onde estão os limites em relação à disposição do país em agir como âncora financeira e política para suas principais iniciativas de política externa’

A implicação não é que o Brasil deve adotar uma abordagem mais beligerante, insensível ou intempestiva nas relações com países vizinhos e extra-regionais. Pelo contrário, a proposição é que o Brasil deve pelo menos reconsiderar onde estão os limites em relação à disposição do país em agir como âncora financeira e política para suas principais iniciativas de política externa.

Lula fez metade do trabalho necessário para fazer do Brasil um líder regional e global transformador. Aproveitar eventos como a cúpula do G20 deste ano e a COP do próximo ano para consolidar o Brasil como um líder regional e um ator global chave exigirá que Lula faça mais do que apenas falar. Ele não só terá que dar o exemplo, mas também trazer os países parceiros do Brasil com ele.

Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian Foreign Policy After the Cold War’.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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