25 junho 2025

O espetáculo da guerra na mídia, os algoritmos e o sequestro das utopias

Como se formam as opiniões na era da guerra ao vivo? A mídia corporativa, aliada do complexo político industrial militar, abre o teatro de operações comunicacional em que as narrativas transformam a guerra em espetáculo e mercadoria

Criança ferida por ataque à Faixa de Gaza (Foto: Unicef)

Por Hector Luis Saint-Pierre*

As guerras que estamos vivendo evidenciam a fragilidade da ordem mundial e o esgarçamento de instituições internacionais, especificamente da Organização das Nações Unidas (ONU). O conflito da Faixa de Gaza, na Palestina, onde o silêncio ominioso sobre o genocídio que deixou, de outubro de 2023 até agora, mais 55 mil mortos – dentre eles 16 mil crianças – e 125 mil desabrigados, expõe a face mais cruel de uma guerra colonial que se estende por mais de 70 sangrentos anos.

A mídia corporativa ocidental, predominante, reforça a narrativa de que essa teria “começado” em 7 de outubro de 2023 com a ação do Hamas – o ataque que deixou cerca de 1.200 mortos entre civis e militares em Israel (muitos dos quais pelo fogo amigo, ante a confusão do exército israelense). A cobertura omite sete décadas de massacres e resistência à colonização.

No confronto Irã versus Israel & Estados Unidos, as agressões, ataques e jogo de influências mantêm vivo um antagonismo regional cujas raízes históricas e consequências geopolíticas também se estendem há décadas. As raízes do conflito também não são destacadas no noticiário a não ser raras reportagens. Ali, entre 1948 e 1979, houve período de cooperação sob a ditadura do Xá Reza Pahlavi, quando Teerã reconheceu o Estado de Israel, e os Estados Unidos apostavam no Irã como base militar aliada no Oriente Médio, apoiando inclusive o desenvolvimento inicial da tecnologia nuclear no país.

A Revolução Islâmica de 1979 e a fracassada aliança contrarevolucionária dos Estados Unidos com Israel para impedi-la interromperam esse entendimento. A rivalidade levou a guerras por procuração — como o apoio iraniano e armamento ao Hezbollah durante a Guerra do Líbano de 2006, ou a venda de armas israelenses ao Iraque de Saddam Hussein na década de 1980. Da mesma forma na arena síria, onde milícias xiitas patrocinadas pelo Irã lutam ao lado de Bashar al-Assad, enquanto Israel conduz ataques aéreos regulares contra as posições e infraestrutura iranianas em solo sírio.

Inimigo externo providencial

O embate Ucrânia x Rússia também tem implicações muito mais profundas. A classificação desse conflito pela mídia ocidental como uma “invasão não provocada da Rússia à Ucrânia” enfatiza o que seria um caráter unilateral e sem justificativa do ataque.

O discurso de “defesa contra a agressão russa” silencia o debate sobre o compromisso assumido pelos Estados Unidos e países europeus de não expandir a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) para o Leste, uma da promessa suficientemente documentada, mas propositalmente esquecida, do fim da Guerra Fria.

A OTAN é uma aliança militar intergovernamental criada em 1949 cujo principal objetivo é a defesa coletiva dos países signatários contra a ameaça do Pacto de Varsóvia, aliança militar da União Soviética. Com a dissolução desta e o desmonte do Pacto, em 1991, tudo levava a supor que a OTAN seria desmontada, pois o fundamento da sua criação tinha acabado. Mas não foi o que aconteceu: não apenas não foi desmontada, mas foi fortalecida incorporando outros países à organização, inclusive da antiga União Soviética, sobre o pretexto da “ameaça russa”.

A cristalização da imagem da ameaça de uma Rússia sempre pronta a invadir a Europa reforça a necessidade de uma nova doutrina militar europeia, ainda que em detrimento de históricas conquistas sociais internas. A recomendação feita pelo atual secretário-geral da Otan, Mark Rutte, de elevar o orçamento de defesa para 5 % do PIB, por exemplo, implicará na realocação de recursos provavelmente de áreas sociais de um “estado de bem-estar” que, na prática, já não vigora mais.

Caso a OTAN decida entrar em guerra, inevitavelmente surgirá uma crise interna: vários países (como a Hungria e a Romênia) já rejeitam tanto o conflito quanto sanções à Rússia, e mesmo os que são favoráveis (França, Alemanha e Reino Unido) teriam de realocar recursos do PIB para defesa, pauperizando ainda mais suas sociedades.

Além disso, a sociedade europeia de hoje é individualista, com baixo sentimento pátrio, e dificilmente aceitaria voluntariamente ir à guerra. Por fim, se até então os europeus acatavam ditames políticos e estratégicos dos Estados Unidos, que lhe forneciam armamento e financiamento, agora que o governo Trump dá suas costas a essa Europa, a saída é o fortalecimento da ideia de uma “ameaça iminente” externa, a Rússia, para se unir.

O surgimento de novas instituições

Qual deveria ser o papel da ONU nessa “terceira guerra mundial em pedaços”, como definiu o Papa Francisco? Constituída após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, para evitar conflitos globais, a organização nascida em um mundo com 80 países, mas que hoje abriga mais de 190 nações, não ajustou os seus modelos decisórios. Seu Conselho de Segurança espelha o anacronismo. Composto por 15 países, tem cinco membros permanentes (China, França, Rússia, Reino Unido, Estados Unidos) com direito de veto.

O voto de um dos membros permanentes pode anular resoluções que todos os Estados membros deveriam cumprir, especialmente em casos de ameaças à paz, cessar-fogo e sanções. Essa desproporção dá margem ao exercício de um poder que molda políticas públicas e crises humanitárias de acordo com interesses geopolíticos dos países com direito ao veto.Como defender uma governança global em que a maioria não tem voz real em organizações nas quais as sociedades nunca são consultadas?

Neste cenário de tensão e conflitos, novos arranjos geopolíticos estão se formando. O BRICS+ busca desafiar instituições tradicionais e abandonar o mundo das regras unipolares para propor um mundo ordenado pela lei e a multilateralidade. Já a Organização para Cooperação de Xangai propõe um sistema de segurança coletiva alternativa sob o princípio da “indivisibilidade da segurança”.

Na América Latina e África, alianças subregionais ensaiam estruturas cooperativas diante de vulnerabilidades econômicas e climáticas, enquanto no Sahel continente africano) surge um movimento que se insurge contra a Europa colonial. Todos eles são ensaios de recomposição, ainda fragilizados, mas com excelente perspectiva num sistema internacional em profunda e dramática transformação, no qual a hegemonia planetária sofre seu ocaso e um novo mundo parece esstar em gesta.

Opiniões confusas e ausência de utopias

Como se formam as opiniões na era da guerra ao vivo? A mídia corporativa, aliada do complexo político industrial militar, abre o teatro de operações comunicacional em que as narrativas transformam a guerra em espetáculo e mercadoria. Os algoritmos priorizam conteúdos preparados para gerar choque emocional em grupos previamente definidos, depreciando dados e análises. Não se trata de explicar a realidade, mas provocar emoções e reações algoritmicamente orientadas contra ela. A proliferação de desinformação e notícias falsas reforça narrativas seletivas que produzem reações sociais desejadas, criando guetos informacionais que impõem versões únicas da realidade, modulam a percepção das sociedades atrofiam o debate público.

A proliferação de desinformação e notícias falsas, que circulam a uma velocidade muito mais rápida que a informação verdadeira, reforça narrativas seletivas, criando guetos de informação que impõem versões únicas da realidade, modulam a percepção das sociedades e dirigem o debate público. Deepfakes geradas com auxílio de IA (vídeos e áudios falsos, porém convincentes) erodem a confiança em qualquer evidência. Esse ambiente midiático impede o surgimento de consensos informados: cada grupo recebe sua própria “verdade”, e a academia, privada de interlocução, vê seu papel reduzido a meros comentários de suporte às imagens.

Embora presente como ferramenta de segurança, a tecnologia transformou-se em instrumento de vigilância, controle e manipulação da percepção da sociedade. Dados pessoais – a principal mercadoria da atualidade – são armazenados em nuvens controladas por companhias privadas gigantescas, como a Amazon Web Services, Microsoft Azure e Google Cloud. Esses dados são colocados à venda para empresas de negócios, governos, exércitos e eventualmente poderiam ser vendidos também às organizações terroristas. Enquanto isso, exércitos digitais e operações de manipulação de informação redefinem o Teatro de Operações onde ocorrem os principais combates de narrativas no campo de batalha da comunicação.

No atual cenário de conflitos e com a ONU desmoralizada, como ficam as expectativas das sociedades? O individualismo induzido na sociedade da competitividade moldou uma juventude que não consegue enxergar no horizonte histórico das suas vidas nenhuma perspectiva de transformação coletiva. A lógica de acumulação do Capital parece ter desenhado uma nova teologia da prosperidade, sequestrando a utopia. Qual o sentido de sonhar com mundo desejado e diferente se o futuro já foi decidido e podemos apenas atravessar o tempo passivamente em direção a ele?

Mais do que em qualquer outro momento, é preciso acabar com a avidez por novidades e se reapropriar do tempo para contemplar, refletir e questionar, principalmente, o modo como as inovações tecnológicas, sistemas de vigilância cibernética e algoritmos de guerra estão afetando a sociedade. É preciso ampliar o acesso aos grandes debates tecnológicos e estratégicos por meio de plataformas participativas que integrem cidadãos, pesquisadores e formuladores de políticas.

Pode ser que diálogo colaborativo em plataformas interdisciplinares nos ajude a recuperar, recriar ou gerar novas cosmotecnologias (o modo como pensamos a tecnologia a partir de nossas visões de mundo, valores e relações com a natureza, o tempo e o coletivo) para resgatar a capacidade de imaginar futuros e projetar utopias coletivas que convivam, pacificamente, com outras.


Hector Luis Saint-Pierre, Professor Titular em Segurança Internacional e Resolução de Conflitos e vice-coordenador do Instituto de Políticas Públicas e Relações internacionais (IPPRI), Universidade Estadual Paulista (Unesp)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

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