29 maio 2024

O mito da liberdade de expressão absoluta e a farsa de Elon Musk

Tanto uma liberdade de expressão absoluta quanto a postura de Musk em relação ao tema são mitos—e não faltam exemplos para refutá-los

Manifestante exibe cartaz de agradecimento a Elon Musk durante protesto de apoio a Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Pode até ser que o Elon Musk defenda a própria liberdade de sair por aí falando absurdos sem o menor fundamento e espalhando teorias conspiratórias. Declarações que já o levaram a prejuízos consideráveis e até processos por fraude. Mas é evidente que ele não é um defensor da liberdade de expressão.

Enquanto se declara um “absolutista da liberdade de expressão”, Musk suspende jornalistas e contas de outras pessoas que discordam da sua plataforma. Enquanto se diz “contra a censura no Brasil”, sua plataforma censura milhares de perfis, bloqueando contas a pedido de governos como o da Índia e da Turquia.

‘Na realidade, Musk tem o costume de processar críticos, pesquisadores, competidores, e até mesmo aqueles que realmente defendem a liberdade de expressão’

Na realidade, Musk tem o costume de processar seus críticos, pesquisadores de discurso de ódio, seus competidores, e até mesmo aqueles que realmente defendem a liberdade de expressão e combatem a propagação conteúdo nazista!

Acontece que o bilionário compreendeu o valor do hype e de gerar polêmicas (clout chasing), assim como a Kim Kardashian, o Jake Paul e tantos outros “influenciadores” e celebridades por lá e por aqui.

O fato de ele ter adquirido uma rede social que funciona à base disso (e tem apresentado perdas regulares tanto de usuários quanto de valor) aumenta o incentivo para que Musk pratique essas condutas (Lembram da “luta na gaiola contra o Mark Zuckerberg”? Então…).

‘Esses são os motivos do ataque de Musk contra o judiciário brasileiro: posar de defensor da liberdade de expressão enquanto cria polêmica e lucra com isso’

Esses são os motivos do ataque de Musk contra o judiciário brasileiro: posar de defensor da liberdade de expressão enquanto cria polêmica e lucra com isso. 

A farsa é tão óbvia que, dias após a questão, o X (ex-Twitter) no Brasil informou que seguiria cumprindo fielmente as decisões da Justiça brasileira — assim como fazem outras filiais do X ao redor do globo (inclusive aquelas que praticam censura, ao cumprir ordens de regimes autoritários de verdade).

Ainda assim, milhares de brasileiros parecem ter caído no golpe do bilionário sul-africano. Talvez por ingenuidade, nossos concidadãos acreditaram tanto na conversa de Musk quanto no mito da “liberdade de expressão absoluta”.

Da falcatrua ao mito

Superada a falcatrua, passamos ao mito. Não existe, em nenhum país do mundo, permissão para que pessoas saiam por aí falando absolutamente o que quiserem — e cometendo crimes pelo caminho. Muito pelo contrário, países e governos que posam de “defensores da liberdade de expressão”, assim como Musk, costumam violar essa previsão regularmente.

Musk, que nasceu na África do Sul durante o apartheid sabe muito bem disso. Durante o regime, o governo segregacionista censurava e fechava tanto “veículos de imprensa geridos por negros” quanto aqueles que julgava “subversivos”, por noticiar “as complexas questões raciais enfrentadas pelo país”. Enquanto isso, aprovava leis garantindo a liberdade de expressão e afirmava o “tradicional direito de criticar da imprensa” (branca, no caso).

Um incauto poderia exclamar então: “Pode até ser que era assim na África do Sul durante o apartheid, mas nos Estados Unidos tem liberdade de expressão!”

Ledo engano.

‘A liberdade de expressão sempre foi relativa nos Estados Unidos. Ao longo da história, enquanto o valor da “Primeira Emenda” era defendido para alguns, a liberdade de expressão de muitos era restringida’

Tal qual ocorria no regime sul-africano, a liberdade de expressão sempre foi relativa nos Estados Unidos. Ao longo da história, enquanto o valor da “Primeira Emenda” era defendido para alguns, a liberdade de expressão de muitos era restringida.

Sim, até hoje o Ku Klux Klan (KKK) e grupos neonazistas existem por lá, mas outros tantos movimentos foram e ainda são reprimidos. 

Nas décadas de 1950-60, enquanto os movimentos dos direitos civis eram brutalmente reprimidos, o KKK, que perseguia e assassinava negros, era legalizado. 

Seguindo essa absurda tradição de relativização da liberdade de expressão, somente em 2003, a Suprema Corte dos EUA decidiu que leis estaduais poderiam proibir a queima de cruzes (ato praticado frequentemente pelo KKK com finalidade intimidatória) apenas quando houvesse de fato a intenção de intimidar.

‘Os Estados Unidos são campeões históricos em violar a liberdade de expressão e reprimir movimentos estudantis’

Da mesma forma que o Brasil tem a hegemonia no futebol, os Estados Unidos são campeões históricos em violar a liberdade de expressão e reprimir movimentos estudantis — dos direitos civis às mobilizações contra a Guerra do Vietnã até os dias de hoje. 

No contexto das mobilizações contra a Guerra do Vietnã, o julgamento dos “Sete de Chicago” (retratado recentemente em filme) ilustra bem o quão longe o Estado norte-americano estava disposto a ir exatamente para restringir a liberdade de expressão.

Mais recentemente, a repressão policial ao movimento pró-Palestina na Universidade Columbia (chancelada pela instituição) é apenas mais um exemplo de uma história da relativa liberdade de expressão. Uma tradição que remonta a 1924, em uma ocasião na qual alunos da universidade queimaram cruzes e ameaçaram um dos primeiros estudantes negros da instituição. A universidade e as autoridades não se deram ao trabalho nem mesmo de identificar os criminosos. O estudante negro pediu desligamento.

Enfim, há milhares de exemplos que refutam o mito da liberdade de expressão absoluta e tantos outros que demonstram a farsa de Elon Musk — assim como “dos confins do mundo”, só cai quem acredita que a terra é plana.

Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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