05 maio 2025

Os caminhos da democracia II – Os males da democracia na América

Donald Trump é o anti-Tocqueville. As virtudes defendidas pelo autor são, para o presidente dos EUA, vícios a serem extirpados. Aquele país de cidadãos livres precisa desaparecer para criar uma America Great Again povoada de súditos dedicados a sepultar A Democracia na América 

Ilustração criada com inteligência artificial retrata o presidente Donald Trump diante de quadro com imagem de Alexis de Tocqueville

A Democracia na América revela entusiasmo com o experimento democrático do novo mundo, mas Tocqueville registra, logo na Introdução, que não fará o “panegírico” da América. De fato, a metade final do livro vai construindo as peças de um jogo – democracia – muito sedutor a princípio, mas que pode terminar mal.

As peças que desviam o jogo do bom caminho – a democracia liberal – estão ligadas às deformações da relação entre liberdade e igualdade. A supremacia absoluta da primeira leva à anarquia e à guerra civil, assim como a hegemonia total da segunda gera o despotismo democrático ou a tirania da maioria. 

Que condições conduzem as sociedades rumo a esses três caminhos –  democracia liberal, anarquia ou despotismo democrático?  A Democracia na América  ajuda a compreender o atual declínio das democracias? Explica o surto de regimes autoritários de extrema direita e esquerda ? Tocqueville imaginava um Trump na América?

Para Tocqueville, a igualdade é um conceito inerente à razão, enquanto a liberdade é um sentimento. Ele chega a dizer que a liberdade é como  o amor – precisa ser reconstruída continuamente.  Aquelas duas variáveis são a base da teoria da democracia de Tocqueville, que depende, na essência, da relação entre o que ele chama hábitos da mente e hábitos do coração. Democracia para ele não era uma forma de governo, mas sim um tipo de sociedade. Por isso, estava muito distante das teorias mais conhecidas no século XIX ou mesmo antes – o determinismo geográfico de Taine; o contratualismo de Hobbes, Locke, Rousseau; e a luta de classes de Marx. Tocqueville estava próximo do liberalismo de Stuart Mill.

O núcleo de seu pensamento era a relação entre igualdade e liberdade. A premissa era que, nos regimes democráticos, a primeira tende a predominar sobre a segunda. Nos EUA essa tendência era mais visível porque lá tinham perdido relevância os padrões de diferenciação e de estratificação típicos da aristocracia – origem social, identidade religiosa, língua, nível de educação.

Essa prevalência da igualdade era ao mesmo tempo origem e resultado de uma sociedade construída até então na ausência de grandes guerras, de marcante desigualdade e de forte tradição. 

Nos povos democráticos, os cultores das ciências sempre temem perder-se em utopias. Eles desconfiam de sistemas, gostam de apegar-se bem de perto aos fatos e de estudá-los por si mesmos … Eles jamais empregam muito tempo em sutilezas de uma escola e se incomodam com grandes palavras. Eles penetram, o quanto podem, nas partes principais do assunto que os ocupa e gostam de exprimi-las em linguagem vulgar. As ciências ganham, então, uma feição mais livre e segura, mas menos elevada. (1)

Isso produzia um país de classe média, onde tranquilidade, prosperidade material e bem-estar eram as aspirações maiores. Mas esse igualitarismo não anula aquele traço da natureza humana em que eu sou igual a meu vizinho mas, ao mesmo tempo, quero ser melhor.  

Se juntarmos essa natureza humana com aquela ausência de diferenciação típica da aristocracia e com a aspiração de prosperidade, é fácil concluir que eu me torno melhor que meu vizinho de uma única forma – mais bens materiais, adquiridos com mais dinheiro.  Assim, como o dinheiro é o grande elemento diferenciador, tudo gira em torno dele, e o estudo, a aprendizagem se transformam em saberes práticos geradores de renda. Zero de filosofia e humanidades – incapazes de aumentar minha renda. 

Nesse universo, também a política perde sentido, por duas razões. Primeiro, ela não produz utilidade e a imagem de uma grande massa ( associada à política) dá medo. Segundo, ao se comparar com a sociedade, a pessoa se sente muito pequena, mínima e, assim, prefere se confrontar  com o vizinho, pois aí pode se sentir grande como indivíduo.  Esse é o ambiente propício a um individualismo pautado sobretudo pelo interesse na família mais próxima e pela obsessão com o acúmulo de bens materiais. A figura do outro, como alguém dotado de valores próprios, intrínsecos, desaparece e vira apenas objeto de intercâmbio, ou seja, o que ele pode me dar em troca. 

O individualismo é de origem democrática e ameaça desenvolver-se à medida que as outras condições se igualem. Nos povos aristocráticos, as famílias permanecem durante séculos no mesmo estado e, muitas vezes, no mesmo lugar. Isso torna, por assim dizer, todas as gerações contemporâneas. O homem conhece quase todos os seus antepassados e os respeita. Ele crê já entrever os seus bisnetos e os ama.” (3)

É no capítulo sobre individualismo que Tocqueville contrasta com maior clareza sociedades aristocráticas versus democráticas. Embora critique as primeiras, reconhece o mérito de produzirem “um laço estreito que une cada homem a vários de seus concidadãos”. 

 “Com efeito, os homens que vivem nos séculos aristocráticos estão quase sempre ligados a algo que lhes é extrínseco e estão muitas vezes dispostos a esquecerem-se de si. … A aristocracia fizera de todos uma longa cadeia que remontava do camponês até o rei: a democracia rompe a cadeia e separa os anéis.” (4)

Em contraste com o sedentarismo dos povos aristocráticos, que permanecem durante séculos no mesmo lugar,  “nos povos democráticos, novas famílias surgem continuamente do nada e outras decaem com igual frequência.”  Por isso, aquela cadeia e aqueles anéis serão rompidos, e a democracia vai oferecer, em seu lugar, uma sociedade com mais igualdade, mais liberdade, mas também mais desgarrada da história, dos antepassados e até mesmo dos contemporâneos.  Para onde vão seus cidadãos?

“Ela os arrasta incessantemente para si mesmos e ameaça encerrá-los inteiramente na solidão de seu próprio coração.” (5)

Essa hegemonia da igualdade e do individualismo exacerbados é o mundo daquilo que Tocqueville chama de primazia dos números, do poder imenso e tutelar das massas, do indivíduo cada vez menor, diante de uma sociedade e de uma opinião pública cada vez maior. As pessoas não têm tempo para se dedicar aos problemas sociais.

A Democracia na América dá então um salto epistemológico, e surge a grande contradição. O autor começa desiludido com os horrores da Revolução Francesa e entusiasmado com o reino da igualdade e da liberdade na América.  Mas a segunda metade do livro vai-se encaminhando na direção de um sistema onde o perigo maior não é a Revolução, mas sim sua absoluta impossibilidade, ou seja, zero capacidade de mudança. Com solucionar esse terrível impasse? Tocqueville imagina então um mundo de mudanças graduais, de reformas concretas, de pequenas revoluções que impedem o surgimento da Grande Revolução. 

Mas como identificar o mundo de hegemonia absoluta da igualdade que sepulta a liberdade?  A resposta tocquevilliana é clara – é o mundo da sociedade perfeita, da estabilidade absoluta, onde o cidadão morre e o súdito toma seu lugar.  

Atingimos então o clímax do pessimismo – a tirania da maioria. Esse sistema pode assumir diversas formas.  Um despotismo suave, quase invisível, sem violência, em que nós mesmos nos tiranizamos. Ou um despotismo democrático, onde a régua de tudo é a igualdade, a homogeneização. Nesse despotismo igualitário nem mesmo o escritor aspira a originalidade do texto, mas sim seu potencial de ser um best seller. Uma terceira modalidade de despotismo seria a democracia dos manufatureiros, dominado pelo poder econômico e onde o Estado ocupa o espaço deixado pelo cidadão.

Nos capítulos finais de A Democracia na América vai ficando cada vez mais clara a convicção de que é mais fácil estabelecer um governo absoluto e despótico num povo cujas condições são iguais.

“ O despotismo me parece, portanto, particularmente temível nas eras democráticas. …  Assim, não se trata de reconstruir uma sociedade aristocrática, mas de fazer surgir a liberdade no seio da sociedade’ democrática. … É da própria constituição das sociedades democráticas e de suas necessidades que resulta que o poder do soberano deva ser mais uniforme, mais centralizado, mais amplo do que em outros lugares.” (6)

O pensamento de Tocqueville vai-se afunilando em direção à conclusão sobre a inevitabilidade do surgimento do despotismo nas sociedades democráticas. E essa conclusão tem por base a seguinte convicção.

“A sociedade é naturalmente mais agitada e mais forte, o indivíduo mais subordinado e mais frágil; uma pode mais, o outro, menos, isso é necessariamente assim.” (7)

Como evitar essa trajetória que começou de forma tão promissora, como uma democracia liberal e que tem como desfecho tamanha distopia?  A Democracia na América não oferece solução para o enigma. Mas sugere caminhos alternativos.  A primeira consiste em evitar que um único princípio político ou social – seja igualdade ou seja liberdade – se imponha de forma absoluta sobre os demais.

Outro caminho seria introduzir, núcleos aristocráticos na sociedade democrática. Esse argumento é revelador de característica muito marcante do pensamento de Tocqueville – o equilíbrio de opostos.  O exemplo por ele citado é a figura do juiz, dotado de grande poder, situado acima dos jurados e criador de leis que nortearam a vida pública na América. 

A terceira alternativa seria preservar e aprimorar um dos traços mais singulares da América – as associações. Essas ensinam, na prática, os princípios basilares da democracia – exercício do diálogo, aceitação das diferenças e capacidade de transigir. Ao estudar as associações na Nova Inglaterra, nosso autor ressaltou a circulação de ideias e chamou-as de “escolas de democracia”. 

Outra virtude das associações seria a de dar a seus membros a sensação de que são mais fortes, mais importantes, até com traços aristocráticos. Assim, compensaria aquele padrão antes assinalado de fraqueza do indivíduo face à onipotência tutelar das massas. 

 Diante de tanto desencanto com a igualdade, com a liberdade, onde encontrar as virtudes do grande experimento democrático do novo mundo?  A resposta de Tocqueville – insuficiente – consiste nas associações.

“Americanos de todas as idades, de todas as condições, de todas as orientações se unem incessantemente. Não só possuem associações comerciais e industriais das quais todos participam, mas de outras mil espécies também: religiosas, morais, sérias e fúteis. Os americanos se associam para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erigir igrejas.”(8)

As páginas finais do livro sintetizam o pessimismo de Tocqueville com os destinos das nações democráticas e contrastam com seu entusiasmo inicial diante do novo experimento na América. 

“Finalizarei com uma ideia geral que encerra em seu seio … a maioria das que este livro tem por objetivo expor. … Eu vejo em nossos contemporâneos duas ideias contrárias, mas igualmente funestas.  Alguns apenas enxergam na igualdade as tendências anárquicas que nascem dela. Têm receio de seu livre arbítrio; têm medo de si. Outros, em menor número … descobrem um caminho que parece levar invencivelmente os homens rumo à servidão.  .. Aqueles abandonam a liberdade porque a estimam perigosa; e estes, porque a julgam impossível. Se eu fosse adepto dessa última crença, não teria escrito esta obra. Eu quis expor à luz do dia os riscos a que a igualdade submete à independência humana. Mas eu não creio que sejam insuperáveis.” (9) 

Conclusão

Tocqueville ajuda a entender as razões do declínio democrático de nossos dias? Creio que sim.  A primazia da igualdade nos primórdios da América gerou uma sociedade sem os padrões de diferenciação inerentes à aristocracia – origem social, nível de educação. Era uma sociedade em que a diferenciação se dava a partir dos bens materiais e onde a educação, a aprendizagem se transforma em saberes práticos.

O estudo de humanidades, filosofia – incapazes de produzir renda – são irrelevantes, marginais. O interesse por questões sociais é mínimo. Essa sociedade do século XIX está presente no americano do Meio Oeste no século XXI – o coração do eleitorado ultraconservador de Trump. É o red neck – alérgico a qualquer forma de intelectualismo, inimigo das universidades destruidoras dos valores morais tradicionais. 

Esse mundo da igualdade diagnosticado por Tocqueville se dissipou e hoje não é mais que o sonho de uma noite de verão.  A Freedom House constata que os EUA são hoje a nação mais desigual do mundo desenvolvido. Mas aquela característica cultural antes apontada – anti-intelectualismo-continua sendo um traço marcante da massa instrumentalizada pela retórica ultra conservadora de Trump. 

No plano material, o desaparecimento da mobilidade social do pós-guerra causa frustração, ressentimento e revolta contra uma democracia que parece privilegiar os mais bem educados – nas universidades de prestígio – e marginalizar  a maioria dos jovens – incapazes de alcançar o padrão de vida dos pais. Esse é o caldo de cultura que produziu Trump e alimenta a retórica de Make America Great Again. 

Nas sociedades democráticas europeias, o problema da desigualdade também está presente. O baixo crescimento econômico impede a mobilidade social, agrava o desencanto com as democracias e alimenta regimes autoritários de extrema direita. Em outras partes do mundo, o autoritarismo de extrema esquerda ganha força, por exemplo, na Venezuela e na Turquia. 

Assim, a relação  entre hábitos da mente( foco na igualdade) e hábitos do coração (foco na liberdade) ajuda a entender o fenômeno Trump e o surto populista no mundo de hoje. O desejo de reduzir a frustração provocada pela escassa mobilidade social e pela desigualdade é muito maior do que a preocupação em preservar a liberdade. Essa é a essência do populismo autoritário. 

A América retratada por Tocqueville refletia uma sociedade de classe média. Igualdade e liberdade conviviam em equilíbrio, as associações asseguravam direitos e deveres, o equilíbrio entre os três Poderes era assegurado pelo sistema de pesos e contrapesos, o Judiciário era admirado e respeitado, a imprensa livre e a liberdade de expressão eram cultivadas. 

A Democracia na América era o espelho desse mundo, mas ao mesmo tempo advertia para dois possíveis descaminhos –  anarquia e tirania da maioria. Esse último foi-se afirmando com um sistema político que  ganhou contornos cada vez mais populistas, com a negação das virtudes da América no século XIX. 

As virtudes defendidas por Tocqueville são para Trump vícios a serem extirpados. O país de cidadãos de Tocqueville, para Trump precisa ser condenado e substituído por uma America Great Again, povoada de súditos dedicados a sepultar A Democracia na América. Trump é o anti- Tocqueville.


Notas. A Democracia na América. 

1- P 832 

2 – P 533

3 – P 591

4 – P 591

5- P 592

6- P 592 e 593

7 – P 826

8 – P 826

9 – P 593

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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