05 janeiro 2023

Pelé foi apanhado pelo ‘racismo à brasileira’, mas manteve-se firme enquanto a ditadura tentava mantê-lo jogando

A determinação de Pelé em enfrentar a ditadura militar e o racismo estrutural representa o maior legado político de sua vida. Para o professor de ciências sociais José Paulo Florenzano, Pelé demonstrou que o esporte e o entretenimento não constituíam o ‘lugar natural’ do afro-brasileiro tal como fora concebido no discurso racista. Fez curso universitário, tornou-se empresário e chegou a ocupar o cargo de ministro do Esporte nos anos 1990

A determinação de Pelé em enfrentar a ditadura militar e o racismo estrutural representa o maior legado político de sua vida. Para o professor de ciências sociais José Paulo Florenzano, Pelé demonstrou que o esporte e o entretenimento não constituíam o ‘lugar natural’ do afro-brasileiro tal como fora concebido no discurso racista. Fez curso universitário, tornou-se empresário e chegou a ocupar o cargo de ministro do Esporte nos anos 1990

Pelé se encontra com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto durante comemorações aos 50 anos do primeiro título da Copa do Mundo conquistado pelo Brasil em 1958

Por José Paulo Florenzano*

Pelé ocupa um lugar central, embora problemático, na construção e na afirmação da identidade nacional brasileira. Seu papel em ajudar a forjar a identidade do Brasil moderno tem raízes em ajudar o país a vencer a Copa do Mundo na Suécia em 1958 e no papel global assumido logo depois por seu clube, o Santos.

O time do Santos na era Pelé viajou pelo planeta como diplomata esportivo, cruzando divisões ideológicas entre comunismo e capitalismo e celebrando a emancipação política de nações emergentes do colonialismo.

Não há dúvida de que as principais conquistas dos times comandados por Pelé foram incentivar a prática do futebol em países onde o esporte raramente era praticado e, ao contrário, ter transformado a forma como o futebol era praticado nas nações tradicionais do futebol. Ao fazer isso, Pelé transcendeu o papel de “ídolo nacional”. Tornou-se algo muito mais significativo: um símbolo da diáspora negra, uma referência pan-africana e um ícone cosmopolita.

‘Pelé personificava a estética do futebol como arte e expressão de liberdade’

Não foi por acaso que Bob Marley –que também foi considerado um herói do Sul Global– fez questão de vestir a camisa 10 de Pelé durante a breve visita do cantor ao Brasil em 1980. Para Marley e outros, Pelé personificava a estética do futebol como arte e expressão de liberdade.

Fora do Brasil, em nenhum lugar a presença de Pelé como ícone da conquista negra foi mais sentida do que na África em descolonização.

O grande jogador moçambicano Eusébio  –que representou a metrópole Portugal no cenário internacional– encontrou sua identidade no futebol jogando por “Os Brasileiros”, um time criado nos subúrbios da atual capital Maputo, em homenagem aos vencedores da Copa do Mundo de 1958.

De fato, inúmeros jogadores africanos da capital de Moçambique receberam os apelidos de “Pelé”, “Garrincha” ou “Didi” –três heróis negros da seleção brasileira e uma inspiração para milhões em todo o continente africano.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/pele-uma-superestrela-global-e-icone-cultural-que-colocou-a-paixao-no-coracao-do-futebol/

Inspiração global, força doméstica

A trajetória profissional de Pelé, entre os anos de 1956 e 1974, coincidiu com o período em que as autoridades brasileiras reivindicavam o que se chamava de “democracia racial” –a crença de que não existia discriminação contra brasileiros não brancos.

‘A trajetória profissional de Pelé coincidiu com o período em que as autoridades brasileiras reivindicavam o que se chamava de “democracia racial”’

Mas essa ideologia serviu apenas para abafar a luta real dos afro-brasileiros e bloqueou o debate sobre a desigualdade racial. Colocou o racismo como algo aparentemente impensável na sociedade nacional, como afirma o estudioso Antonio Sergio Alfredo Guimarães em seu livro “Classes, Raças e Democracia”.

Essas foram as condições em que se deu a trajetória de Pelé, e suas experiências revelaram como operava dentro do ‘racismo à brasileira’.

Pouco depois de vencer a terceira Copa do Mundo do país em 1970, Pelé decidiu se aposentar da seleção para se dedicar aos negócios e à carreira no clube. Ao fazê-lo, a unanimidade que havia sido tecida em torno de sua imagem no Brasil rapidamente se desfez.

Pelé enfrentou pressão para continuar jogando pela seleção nacional por um regime ditatorial interessado em extrair dividendos políticos de qualquer triunfo do futebol no cenário internacional. Ao mesmo tempo, era advertido pela elite branca que buscava limitar seu papel ao de atleta –e com isso reiterar o lugar reservado ao negro na sociedade brasileira.

‘Pelé enfrentou coerção, ameaças e chantagens na tentativa de fazê-lo se curvar aos interesses convergentes da ditadura militar e do racismo estrutural’

A abordagem de Pelé para lidar com a ditadura brasileira foi criticada –a implicação é que ele poderia ter sido mais direto em sua oposição a ela. Mas, de 1971, quando anunciou sua saída da Seleção, até 1974, quando encerrou a carreira no Santos, Pelé enfrentou coerção, ameaças e chantagens na tentativa de fazê-lo se curvar aos interesses convergentes da ditadura militar e do racismo estrutural.

Tal intimidação incluiu o cancelamento de dois jogos de despedida que seriam realizados em meados de 1971 em São Paulo e no Rio de Janeiro para homenagear suas conquistas.

Pelé não recuaria diante das duras críticas de certos quadrantes feitas em nome de um nacionalismo exacerbado que o tachava de mercenário ou traidor.

Maior legado político

O caráter contestado de sua despedida dos gramados na verdade encerrou um dos capítulos mais fascinantes da vontade insubmissa de um jogador negro frente às estruturas de poder da sociedade brasileira.

A postura de Pelé foi informada não apenas por seu desgosto pela tortura praticada pela ditadura brasileira, mas também por um desejo pessoal de poder ser recompensado por sua fama e futebol. No entanto, a determinação de Pelé em enfrentar uma ditadura militar e o racismo estrutural representa o maior legado político de sua vida.

‘A trajetória de Pelé revela que o futebol pode se transformar em um espaço de luta antirracista’

Pelé demonstrou que o esporte e o entretenimento não constituíam o “lugar natural” do afro-brasileiro tal como fora concebido no discurso racista. Fez curso universitário, tornou-se empresário e chegou a ocupar o cargo de ministro do Esporte nos anos 1990.

A trajetória de Pelé revela que o futebol pode se transformar em um espaço de luta antirracista. Ao se recusar firmemente a ser visto apenas como um jogador de futebol e ao seguir uma carreira fora do campo, Pelé exerceu o direito de que os afro-brasileiros não fossem excluídos de atividades historicamente monopolizadas pelos grupos brancos mais privilegiados.

A importância histórica de Pelé condiz com o contexto atual em que o Brasil se encontra. Após quatro anos de governo de extrema-direita, o retorno de um governo não inclinado a diminuir a democracia, e comprometido com a luta antirracista, representa a retomada do uma trajetória para o Brasil que a própria jornada de Pelé ilustrou.


*José Paulo Florenzano é professor de ciências sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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