Política industrial – Nova ou repetida?
Nova política industrial está pautada pelo anacronismo de reeditar erros do passado e pela pressão para produzir efeitos rápidos de curto prazo, sem a indispensável solidez técnica e o necessário distanciamento político
O declínio da globalização, o avanço da desindustrialização e o crescimento dos regimes de extrema-direita recolocaram a política industrial na agenda de muitos países. No Brasil, o programa Nova Indústria Brasileira (NIB), lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da silva em 22 de março com financiamento de R$ 300 bilhões tem sido objeto de um debate público que reflete duas visões econômicas: os partidários de maiores gastos governamentais como o grande motor do crescimento, e os defensores do aprimoramento de políticas públicas voltadas para ganhos de gestão e de produtividade.
Latu sensu, esse debate acompanha nossa história há mais de 80 anos e foi um grande divisor de águas: Roberto Simonsen x Eugenio Gudin; estruturalistas x monetaristas; desenvolvimentistas x fiscalistas. Mas a grande preocupação presente no atual debate reside no risco de ser a NIB apenas uma reedição de erros passados, sobretudo na gestão da presidente Dilma Rousseff.
A política industrial no Brasil, até final dos anos 1950, esteve intimamente associada ao processo de industrialização por substituição de importações (ISI), como ressaltam Eduardo Guimarães, Pedro Motta Veiga e Sandra Rio, no artigo A experiência brasileira de política industrial : uma avaliação, publicado na Revista Brasileira de Comércio Exterior (RBCE), de janeiro/fevereiro/março de 2018. No início, o crescimento industrial esteve associado apenas à capacidade de importar, mas a partir dos anos 1940, a continuidade da substituição de importações dependeu de intervenção do Estado na política industrial. Predominava, como ressaltado na RBCE,“ a visão de que o desenvolvimento econômico do país – e seu motor, o processo de industrialização – deve ser apoiado por uma ação articulada do setor público.”
Essa visão ficou cristalizada no Plano de Metas de JK (1957/1961) e resultou em crescimento excepcional nas áreas de energia elétrica, transportes, indústria básica e automobilística, estimuladas por financiamentos do BNDES, com taxas de juros fortemente subsidiadas. Entretanto, logo em seguida, começou o esgotamento da ISI, que coincidiu com a exaustão da capacidade de financiamento do setor público.
A forte crise econômica (aceleração inflacionária) e política (golpe militar de 1964) produziu inicialmente um programa de ajuste com forte rigor fiscal. Entretanto, já no governo Geisel, o II Plano Nacional de desenvolvimento ( PND), priorizou o crescimento e transformou a política industrial, ao incorporar três elementos: política de promoção de exportações; recurso ao endividamento externo para financiar o investimento público e privado; e projetos nas área de insumos e mineração baseados em associações entre capital privado nacional, estrangeiro e estatal, cada um com cerca de um terço do investimento.
A deterioração da economia ao longo dos anos 1980 eclipsou a política industrial e, apenas a partir do início da década de 1990, foi implantada a nova Política Industrial e de Comércio Exterior (Pice), que abandonou alguns paradigmas das cinco décadas anteriores. Entretanto, a política industrial a partir de então foi incapaz de se adaptar às mudanças domésticas e internacionais, o que reduziu em grande medida nossas chances de impulsionar indústrias voltadas para ganhos de produtividade e competitividade.
A ISI perdeu consistência e se esgotou, mas o conteúdo e os instrumentos da política industrial herdados do passado da substituição de importações foram preservados. Em contraste com essa inércia, grandes transformações nos processos produtivos foram introduzidas em escala mundial, como a fragmentação produtiva e as cadeias globais de valor.
Para agravar esse quadro de anacronismo, a política industrial a partir do segundo governo Dilma (2011) transformou a substituição de importações na fonte de inspiração para a política industrial. O mundo mudou intensamente, mas o Brasil, de olho no retrovisor, repetia, na segunda década do novo século, um passado de oitenta anos antes. O resultado não podia ser outro – retrocesso industrial seguido de dois anos da maior recessão da história do país.
Essa resiliente visão do Estado como o motor da economia é herdeira do argumento da indústria nascente, do economista alemão do século XIX Friedrich List, para quem os países atrasados só conseguem desenvolver novas indústrias com intervenção estatal. As ideias de List foram retomadas e aprimoradas por Ha-Joon Chang, da Universidade de Cambridge, em seu livro Chutando a escada – A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica.
Há algumas décadas, a centralidade do Estado como o motor do desenvolvimento vem merecendo ampla recepção no Brasil, graças ao exitoso surto industrial dos Tigres Asiáticos – Coreia do Sul, Cingapura, Hong Kong e Taiwan. Essa visão preserva visível influência sobre a NIB, que tem como formuladores alguns dos autores da Nova Matriz Econômica.
Ao eleger a Coreia do Sul como modelo a ser seguido, muitos economistas esquecem que seu excepcional avanço industrial resultou de indicadores econômicos muito diferentes dos nossos: elevada taxa de poupança doméstica, o que assegurou baixa taxa de juros e consequente fomento às inversões privadas; política industrial baseada em estímulos temporários, definidos com base em critérios técnicos e cuja duração está sujeita ao padrão de desempenho; e política de valorização robusta da educação e do capital humano afastada de ingerências políticas. Tudo isso é muito distante da nossa realidade. Assim, é irrealista eleger a Coreia do Sul como referencial para nossa política industrial.
A nova política industrial anunciada por Lula se inspira na ideia de que grandes inovações sempre tiveram por trás um Estado empreendedor, porque, nessa percepção, a iniciativa privada não tem visão de longo prazo. De fato, o Brasil viveu histórias de sucesso graças a políticas públicas inovadoras e articuladas com instituições de excelência.
O êxito da indústria aeronáutica em nosso país é clara demonstração dessa combinação de uma instituição de excelência (ITA/CTA) com uma empresa competitiva e inovadora (Embraer). O êxito do agronegócio também traduz esse amálgama virtuoso entre uma instituição pública dotada de técnicos com excepcional qualificação técnica (Embrapa) e uma iniciativa privada inserida no mundo e voltada para a absorção de novas tecnologias. A descoberta do pré-sal reflete décadas de investimento em capital humano, tecnologia e boa governança numa empresa (Petrobras) que foi precursora na exploração de águas profundas.
Mas a nova política industrial anunciada pelo presidente Lula não tem como espelho essas três estratégias de longo prazo, distantes do jogo político, comprometidas com aumentos de produtividade e vocacionadas a crescente inserção internacional. Ao contrário, a NIB busca superar a desindustrialização com instrumentos que nada têm de novo: créditos tributários; requisitos de conteúdo local; subsídios; empréstimos. Ou seja, um aparato distante dos paradigmas que inspiraram as três histórias de sucesso antes descritas e, ao mesmo tempo, muito próximo da Nova Matriz Econômica de resultados desastrosos para o país.
A história da política industrial em nosso país combina êxitos e fracassos. Nos anos de 1940 e 1950, período áureo do processo de substituição de importações, o Estado soube comandar uma exitosa, diversificada e dinâmica industrialização. O descontrole das contas públicas, associado a crises políticas dos anos 1960 eclipsou a política industrial. O II PND, de 1975 a 1979, reverteu essa tendência e logrou êxitos que até hoje permanecem, como a criação, dois anos antes, da Embrapa e a modernização da Petrobrás. A década perdida de 1980 foi palco de novo recolhimento da política industrial. Os mandatos de Fernando Henrique Cardoso promoveram importante ajustamento e reformismo econômico (Plano Real) e a presidência de Lula ampliou e aprofundou políticas sociais exitosas (Bolsa Família). Entretanto, logo depois, a política industrial sofreu um desastroso retrocesso, com efeitos sistêmicos nefastos, no primeiro mandato da presidente Dilma.
Essa breve retrospectiva da política industrial no Brasil deixa claro que os períodos de êxito foram marcados por diretrizes alicerçadas em diagnósticos técnicos bem elaborados, com limitada ingerência de interesses políticos e com visão de longo prazo. Em contraste com essa trajetória virtuosa, a atual política industrial está pautada pelo anacronismo de reeditar erros do passado e pela pressão para produzir efeitos rápidos de curto prazo, sem a indispensável solidez técnica e o necessário distanciamento político. É receita para o fracasso.
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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