Qual é o limite da vida privada dos políticos?
Tratados como modelos de boa cidadania, políticos criam costumes cívicos, iluminam os cidadãos e os orientam através de valores éticos e morais de seu comportamento. Para o cientista político Ernesto M. Pascual Bueno, esse pensamento é equivocado e confunde as esferas pública e o privada sem benefício à sociedade e à democracia
Tratados como modelos de boa cidadania, líderes criam costumes cívicos, iluminam os cidadãos e os orientam através de valores éticos e morais de seu comportamento. Para o cientista político Ernesto M. Pascual Bueno, esse pensamento é equivocado e confunde as esferas pública e o privada sem benefício à sociedade e à democracia
Ernesto M. Pascual Bueno, UOC – Universitat Oberta de Catalunya
Vocês nunca participaram de uma festa onde a música e o álcool eram ingredientes essenciais? Talvez devam até ter chamado a atenção de alguns colegas que começaram a tirar fotos picantes. Se a maioria de nós já passou por essas situações, por que exigimos aos políticos que se abstenham disso? É o caso da primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin.
Os pensadores clássicos Hegel, em sua Estética, e Rousseau, em seu Discurso sobre a origem da desigualdade, nos dão uma resposta simples: os políticos são criadores de costumes cívicos, iluminam os cidadãos, orientam-nos através de valores éticos e morais de seu comportamento. Nessa questão, na sociedade moderna, todos os tipos de figuras públicas se juntam, especialmente os atletas, no que é visto (na minha opinião, erroneamente) como modelos de boa cidadania.
No entanto, esse raciocínio que serviu nas sociedades pré-constitucionais é sobrepujado pelas razões conjunturais das sociedades pós-modernas: a disputa acirrada por manchetes em alguns meios de comunicação –quanto mais escandalosa, melhor–, a personalização da política em sua forma mais partidária e a enorme influência em nossas vidas de redes sociais. Esses fenômenos gradualmente confundiram o que é público e o que é privado. Então, no momento, consideramos a transparência o valor universal e, portanto, tudo deve ser público.
Cultura política nos EUA e na Europa
Há também razões estruturais derivadas da cultura política de cada país. Em geral, os anglo-saxões, os EUA na liderança, têm sido os defensores do modelo segundo o qual o escrutínio da vida privada dos políticos é necessário para avaliar sua ação pública. Enquanto os países europeus, especialmente os franceses, sempre consideraram que o comportamento privado não deve pesar na esfera de interesse da ação política.
Assim, na América do Norte, o deputado democrata Anthony Weiner renunciou após postar fotos seminuas de si mesmo em uma rede social. Por outro lado, os franceses descobriram no funeral de seu presidente François Mitterrand que ele tinha uma segunda família, secreta e também beneficiária de fundos públicos, e eles elegeram François Hollande presidente após a batalha pessoal e política com sua ex-mulher Ségolène Royal.
Sem dúvida, outro componente estrutural é a diferença religiosa entre o puritanismo americano e o catolicismo europeu. Os puritanos (protestantes) aceitam ideias contrárias ao seu pensamento, mas não condutas que não se enquadrem em seu decálogo moral: amantes, uso de drogas ou mentiras em público. Na Europa, o comportamento licencioso em matéria de amor é aceito, enquanto é aceito que os políticos podem não dizer toda a verdade em sua própria defesa.
Outra razão tem a ver com a percepção da opinião pública sobre quais são os papéis dos políticos. Enquanto a direita parece encarnar um papel de desenvolvimento e prazer, a esquerda é caracterizada como trabalho e sofrimento. Só assim podemos explicar o cerco político à “mansão” de Galapagar comprada em 2018 pelo então secretário-geral do Podemos, Pablo Iglesias, e pela então porta-voz do Unidos Podemos no Congresso, Irene Montero, que no imaginário coletivo ultrapassa os limites de uma casa de um líder de esquerda, ou o tratamento público diferenciado entre os partidos de Boris Johnson e Sanna Marin. Eu acrescentaria mais uma nuance neste caso: ela é uma mulher.
Casos amorosos e função pública
Mas a pergunta é: essa cooptação do espaço público pela vida privada favorece a democracia? Que vantagem nos dá, ao meditar sobre o voto, conhecer os casos amorosos de um político, suas afiliações esportivas, seu consumo de álcool ou cigarros? Sempre entendendo que isso não influencia no bom desenvolvimento de sua função pública.
O uso dessas informações tende a reduzir o escrutínio de sua ação governamental. Além disso, é usado pelos escritórios de comunicação como arma de distração. Assim, todos lembram que o presidente dos EUA, Bill Clinton, teve um caso com a estagiária Monica Lewinsky, mas poucos sabem que foi ele quem revogou a lei que separava bancos de investimento e bancos de poupança, que levou à crise financeira de 2008.
Isso significa que os políticos e as primeiras instituições do país têm impunidade? Não, em hipótese alguma. Sabemos bem disso na Espanha. Os limites são marcados por leis. O assédio sexual é uma conduta processável em todas as esferas sociais, e os cidadãos franceses aprenderam muito com isso no caso do diretor-gerente do FMI Dominique Strauss-Kahn, acusado de estupro e preso em Nova York em 2011. Foi um precedente do #MeToo.
Em geral, em todos esses comportamentos não criminosos, a vida privada é relevante se for demonstrada sua incoerência com o discurso político. Como aquele parlamentar britânico abertamente homofóbico que se revelou gay. Sua punição deve ser dada nos resultados eleitorais.
*Ernesto M. Pascual Bueno é professor de estudos de direito e ciência política na UOC – Universitat Oberta de Catalunya
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em espanhol.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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