Sergio Abreu e Lima Florêncio: Morte das democracias, sobrevivência das autocracias?
Três estudos diferentes descrevem um cenário marcado por sombras para a democracia liberal em todo o mundo enquanto apontam para a resiliência de autoritarismo. Para embaixador, mesmo que a perspectiva não permita falar em zona de conforto, há esperança de mudança, e pessimismo não significa fatalismo
Três estudos diferentes descrevem um cenário marcado por sombras para a democracia liberal em todo o mundo enquanto apontam para a resiliência de autoritarismo. Para embaixador, mesmo que a perspectiva não permita falar em zona de conforto, há esperança de mudança, e pessimismo não significa fatalismo
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
As democracias liberais estão em crise no mundo. A lenta recuperação pós-crise econômica de 2008, o arrefecimento da globalização, os efeitos da pandemia e o crescimento excepcional da China explicam em parte a crise. Mas outros fenômenos, tanto nas economias avançadas como no mundo em desenvolvimento, são igualmente responsáveis pelo desencanto com o modelo político liberal.
Uma primeira leitura atribui esse desencanto a líderes populistas que capitalizaram expectativas frustradas para vencer eleições democráticas, após o que foram gradualmente minando as instituições representativas e instalando democracias iliberais.
Uma segunda percepção interpreta a crise como resultante do populismo antidemocrático, mas também da disfuncionalidade das instituições. Essas foram se distanciando das aspirações populares e se aproximando de tecnocracias ou burocracias que priorizam interesses de segmentos privilegiados, em detrimento de políticas sociais inclusivas. O resultado são liberalismos antidemocráticos.
Uma terceira interpretação está voltada para a expressiva resiliência dos regimes autoritários originários de revolução (China e Irã), em contraposição à fragilidade das democracias liberais.
Essas três versões permitem antever o desmonte das democracias liberais e a ascensão das autocracias?
As economias de mercado experimentaram notável expansão ao longo do pós-guerra até o primeiro choque do petróleo em 1974, seguida de inflação nos países avançados e de elevado endividamento no mundo em desenvolvimento. A partir dos anos 1990, com o avanço da globalização, a emergência da China, a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, a democracia liberal viveu seu apogeu, desfazendo autocracias, no Leste Europeu, na América do Sul, no Sudeste da Ásia.
Liberalismo e democracia constituíam então um binômio, visto como interdependente, em processo de expansão e consolidação. Para isso era necessário elevado nível de renda, sociedade civil vibrante e instituições representativas. Mas esse mundo começou a se desfazer.
Uma causa, apontada por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no best seller Como as Democracias Morrem, foi a emergência de populistas, até então outsiders da política. Eleitos democraticamente, esses líderes se afastavam aos poucos, e de modo legal, dos pilares da democracia liberal – equilíbrio entre os poderes, respeito às instituições, direitos humanos, alternância no poder.
Esse desmonte das democracias a partir de um líder populista antidemocrático atingiu dezenas de países e configurou as democracias iliberais – EUA, Polônia, Hungria, Turquia, Filipinas, Venezuela e Brasil. Assim, para Levitsky, a ameaça maior à democracia se situa em dois níveis: os “abusos” do líder populista e a polarização político-partidária.
Essa visão de Levitsky foi revista, ampliada e aprofundada por Yascha Mounk em O Povo contra a Democracia. Além do perigo das democracias iliberais, Mounk identifica outra ameaça, representada pelos liberalismos antidemocráticos, quando se rompe o amálgama entre direitos individuais e vontade popular, que antes “andavam juntos, como torta e maçã”.
Nessa linha, seu olhar se volta para as divergências e conflitos que se estabelecem entre os interesses de instituições democráticas dirigidas por segmentos tecnoburocráticos versus as aspirações da grande massa da população. Esses segmentos se destinam muito mais a promover a eficiência econômica do que a atender as necessidades da maior parte da sociedade. Ora, diante de instituições com esse perfil, o cenário prevalecente no seio da sociedade passa a ser “o povo contra a democracia”.
Mounk ilustra a distinção entre os dois modelos – democracia iliberal e liberalismo antidemocrático – ao comparar os casos da Hungria (onde Viktor Orban “declara em alto e bom som sua oposição à democracia liberal”) e da Grécia (onde Alexis Tsipras “viu-se reduzido a duas opções: capitular às demandas dos tecnocratas ou conduzir a Grécia ao caos econômico”).
Seu argumento central é que a insatisfação popular com as instituições independentes gera “preferências do povo cada vez mais iliberais”, ao mesmo tempo em que as elites tornam o sistema político “cada vez mais insensível: os poderosos estão cada vez menos dispostos a ceder às opiniões do povo”.
A conclusão de Mounk é de extremo pessimismo: “Como resultado, liberalismo e democracia, os dois elementos centrais de nosso sistema político, começam a entrar em conflito”.
Se a crise das democracias é evidente, o que dizer do destino das autocracias? Uma das ideias que conformava o credo liberal e muito influenciou a política norte-americana sustentava que abertura e reformas na economia fatalmente levariam à liberalização política. Isso deu errado após o desmembramento da União Soviética e nunca se consumou na China, que continua uma autocracia, a despeito das exitosas reformas econômicas. A questão do destino das autocracias é objeto do estimulante artigo de Lucan Ahmad Way Don´t count the dictators out.
Para Way, as autocracias mais resilientes são aquelas que surgiram de revoluções sociais violentas, como China e Irã, e apresentam as mais sérias ameaças à atual ordem internacional.
No caso da China, a autocracia subsiste apesar do desempenho econômico espetacular, que aumentou o PIB 43 vezes de 1978 a 2022. Isso ocorre porque o crescimento econômico é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que fortalece um regime autocrático, planta as sementes da democracia. Nessa linha, Way ressalta que, dentre 54 países classificados com alto nível de renda pelo Banco Mundial, apenas 3 (Hungria, Brunei e Cingapura) não foram considerados “livres” pela Freedom House em 2022. Essa tendência é corroborada pela trajetória da Coreia do Sul e de Taiwan, onde a expansão econômica produziu regimes democráticos.
Por que na China foi diferente? A resposta de Way reside no fato de o atual regime chinês ter resultado de uma revolução social violenta que, sob o comando de Mao Tse Tung, unificou o país e organizou o Estado. O resultado foi a eliminação de alternativas à hegemonia do Partido Comunista Chinês (PCC) e a consequente consolidação do totalitarismo.
O Irã é outro exemplo que vai na mesma direção. As origens violentas e revolucionárias da República Islâmica explicam a “tenacidade” do regime, apesar do “tumulto” das ruas.
Way ressalta que, em contraste com transições no Egito e na Sérvia, quando os militares desertaram os líderes Mubarak e Milosevic, no Irã, apesar das sanções internacionais, de gigantescos protestos, da repressão e da violência, nem mesmo primeiros-ministros liberais, como Moussavi e Khatami, romperam integralmente com a hierarquia teocrática. Essa resiliência deve muito às origens revolucionárias e violentas da República Islâmica.
Em contraste com a China e o Irã, a Rússia de hoje não se originou de uma revolução. Putin, chegou ao poder pela via eleitoral, o que explica em grande medida maior fragilidade do atual regime. Apesar disso, o fato de Gorbachev ter preservado a estrutura da antiga KGB facilitou a permanência de Putin no poder por mais de duas décadas. Nessa linha, Way argumenta que os autocratas revolucionários, leia-se China e Irã, são hoje “os desafios mais intratáveis para a ordem internacional”.
Os três autores aqui examinados – Levitsky, Mounk e Way – descrevem um cenário para a democracia liberal marcado por sombras. Cada um a seu modo desenha possíveis saídas.
O primeiro vislumbra uma crescente consciência social e política quanto aos riscos de populistas autoritários. O segundo recomenda reforma nas instituições independentes que, criadas para servir a população, se blindaram, defendem interesses de classes privilegiadas e, assim, colocam O povo contra a democracia. O terceiro traz a mensagem ‘No revolution is forever’ e lembra que os revolucionários envelhecem. Nenhuma dessas alternativas coloca as democracias liberais em uma zona de conforto. Mas são esperança de mudança, e pessimismo não significa fatalismo.
*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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