Três meses de Javier Milei na Argentina e a ameaça autoritária na América Latina
O balanço do ocorrido até aqui contraria as expectativas de moderação: Milei segue fiel ao estilo histriônico e agressivo que caracteriza sua vida pública e rende comparações com outras lideranças da extrema-direita
O balanço do ocorrido até aqui contraria as expectativas de moderação: Milei segue fiel ao estilo histriônico e agressivo que caracteriza sua vida pública e rende comparações com outras lideranças da extrema-direita
Por Matheus de Oliveira Pereira*
A posse de Javier Milei como presidente da Argentina, em 10 de dezembro de 2023, suscitou questões que iam além dos prognósticos de praxe nessas ocasiões. Mais do que dúvidas sobre condução da economia, relações exteriores, ou construção de alianças políticas, a posse de Milei levou diversos analistas, entre os quais me incluo, a indagar sobre a resiliência das instituições democráticas argentinas que, apesar das imperfeições, sobreviveram a choques significativos nos últimos 40 anos.
Eleito presidente sem qualquer experiência política relevante, Milei fez uma campanha marcada por propostas ambiciosas, mas pouco explicadas, e por uma oposição ao status quo que ultrapassava os espectros tradicionais, direcionando-se à “casta” política que, em sua visão, parasitava o Estado e condenava o país ao fracasso.
Sua vitória colocou a Argentina na onda global de ascensão da extrema-direita, estimulando paralelos inquietantes com figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro, cujas gestões foram marcadas por ataques persistentes às instituições democráticas e tentativas de subverter resultados eleitorais desfavoráveis.
Como toque final, Milei escolheu como companheira de chapa a advogada Victoria Villaruel, uma figura igualmente inexperiente na política e conhecida pela relativização dos crimes cometidos pela ditadura instaurada no país em 1976,
Seria Milei, um autodenominado anarcocapitalista libertário, de cabelos desgrenhados, sem qualquer trajetória político-partidária relevante e que prometia “resetar” o país uma ameaça à democracia conquistada a duras penas? Parte expressivas das análises que circularam à época respondiam afirmativamente a esta questão.
Antes mesmo da vitória no segundo turno, Milei era apontado como risco à democracia e às instituições argentinas por comentários feitos em diferentes espectros políticos.
Até mesmo a revista britânica The Economist, crítica contumaz do peronismo e defensora de primeira hora de candidatos defensores do neoliberalismo, classificou o candidato como perigoso, criticando as propostas econômicas de viabilidade duvidosa e a relativização dos crimes cometidos pela ditadura.
Embora predominantes, essas visões convivem com análises, mais escassas, que contestam a leitura que Milei seria uma figura autoritária. Especialmente no período entre a eleição e a posse, uma série de expectativas de moderação foram nutridas em relação ao presidente, alimentadas pela nomeação de ministros considerados moderados pelo establishment e pelo abandono, ao menos por ora, de duas das suas mais polêmicas promessas de campanha: a dolarização total da economia e a extinção do Banco Central.
Mais recentemente, a agenda encampada pelo presidente foi alvo de prognósticos positivos e o acordo com o FMI, somado a um celebrado superávit fiscal em janeiro e fevereiro, alimentam o otimismo dos mercados. E quanto à ameaça autoritária? Em que medida os temores se mostraram acertados?
Os cem dias de mandato completados no último dia 20 representam uma marca comumente adotada para esboços de interpretação inicial de governos que se iniciam. Embora os pouco mais de três meses de mandato não permitam ir além de uma análise preliminar, o balanço do ocorrido até aqui contraria as expectativas de moderação: Milei segue fiel ao estilo histriônico e agressivo que caracteriza sua vida pública e rende comparações com outras lideranças da extrema-direita.
O polêmico discurso na abertura do ano legislativo, diante do Congresso Nacional, é o exemplo mais recente desse comportamento que, até agora, é o principal responsável pelas dificuldades de articulação política que vêm impondo reveses ao presidente e reforça as leituras de que ele pode representar um risco autoritário.
Agenda fundacional
Desde que tomou posse, Javier Milei busca governar a partir de uma lógica que parece considerar os votos obtidos na eleição de novembro como assinatura em um cheque em branco, investindo-o de uma autoridade praticamente absoluta. Já nas duas primeiras semanas de mandato, o presidente lançou duas iniciativas legislativas que pautaram todo o debate político desde então: o Decreto Nacional de Urgência 70/23 e a Ley de Bases y Puntos de Partida para la Libertad de los Argentinos, que ficou conhecido como “Lei Ônibus”. Tanto a DNU como a Lei Ônibus são dispositivos que, em sua forma, extensão e conteúdo, vão muito além de um esforço de “terapia de choque”; elas visam criar o respaldo legal para que Milei governe o país de uma forma distinta daquela que se expressa na Constituição de 1994.
Não se trata apenas de solicitar ao Congresso autorização para governar com poderes excepcionais – o que por si só já seria bastante problemático, embora não seja inédito – mas sim de requisitar esse poder para governar na excepcionalidade. É como se o presidente entendesse que sua vitória nas urnas o investe de uma espécie de poder constituinte, que lhe daria – e somente a ele – legitimidade para refundar o Estado argentino.
O título oficial da Lei Ônibus, aliás, denuncia essa intenção ao remeter ao célebre livro de Juan Bautista Alberdi, “Bases e Pontos de partida para a organização política da República Argentina”, obra que estabeleceu os princípios sobre os quais foi redigida a Constituição de 1853.
É nesse sentido que se inscreve a busca por poderes ilimitados. A justificativa oficial de que as prerrogativas excepcionais são, na verdade, um requisito imposto pela gravidade da situação atual parece mais uma tentativa de emular o contexto da aprovação de pedidos similares feitos por Eduardo Duhalde e Néstor Kirchner do que uma exigência dos tempos.
Um ponto chave é que a solicitação de poderes especiais feita por Milei não visa agilizar a atuação do presidente em questões específicas. Juntas, a Lei Ônibus e o DNU 70/23 têm mais de 1200 artigos que cobrem desde a legislação trabalhista e regulação econômica até questões de segurança e defesa nacional.
Dito de outro modo, Milei busca realizar, com apenas dois projetos de lei, mudanças que têm o escopo de uma reforma constitucional, para a qual não possui legitimidade – porque os eleitores não votaram em uma assembleia constituinte – e sem submeter o teor mais profundo de seus projetos ao escrutínio e deliberação legislativa. A decisão de retirar o projeto de tramitação após o revés na Câmara dos Deputados ilustra com clareza a visão de “tudo ou nada” que guia Milei nas relações com o Congresso.
Um segundo aspecto marcante é que o presidente não parece atento aos resultados das ações, decidindo-as mais em respeito as suas convicções que aos resultados esperados. Milei não faz promessas de recuperação rápida e não demonstrou, até agora, nenhuma preocupação genuína com a construção de horizontes temporais previsíveis para que suas medidas comecem a surtir algum efeito positivo.
Ao mesmo tempo, a intransigência com que ele se aferra a sua agenda revela um apego quase emocional às visões de mundo que lhe orientam. Nesse sentido, Milei parece crer que encampa uma cruzada moral, em que, convencido de mover-se segundo valores eticamente superiores, o presidente preocupa-se mais de fazer a coisa que lhe parece certa do que com os resultados possíveis de suas medidas, convicto de que, em algum momento que não se pode precisar, os impactos previstos nos modelos teóricos aparecerão.
A estrada à frente
O comportamento histriônico e agressivo de Javier Milei, vociferando slogans contra a “casta” e atribuindo à ela todos os reveses do país, pode produzir excelente matéria prima para vídeos curtos que animam seus acólitos nas redes sociais, mas é evidentemente insuficiente para governar de fato o país. Ao contrário do que afirmou o presidente em fevereiro, sem o Congresso não será possível dar um rumo, seja ele qual for, nem à economia nem a qualquer outra agenda.
Neste sentido, a posição de Milei não é apenas uma mostra de incivilidade, incompatível com a postura esperada do chefe de estado de uma democracia, mas uma abordagem altamente desgastante das relações com o poder legislativo. Nesses primeiros meses, Milei dá indícios de superestimar seu capital político ao esperar que o Congresso se submeta a ele, e, ao tratar suas iniciativas sempre em termos de tudo ou nada, ele corre o risco de magnificar suas derrotas, corroendo ainda mais seu poder.
Ao mesmo tempo, o presidente segue alienando, mais do que fortalecendo sua base de apoio, o que resultou em um recente revés imposto por sua própria vice, que na Argentina acumula a função de presidente do Senado.
À indisposição ao diálogo e à resistência a negociação somam-se, ainda, uma atitude agressiva em relação aos movimentos sociais e a disposição firme de reprimir com a força necessária as manifestações populares contrárias. Isto vem se traduzindo em uma política de segurança cada vez mais dura, visando conter a vibrante capacidade de mobilização social que é uma das marcas do país. Somados, esses elementos formam um quadro preocupante que, a meu ver, reforça as leituras que apontavam características autoritárias em Javier Milei.
Evidentemente, a deterioração da democracia no país não depende apenas dos impulsos antidemocráticos do presidente e a forma como Milei se indispõe e aliena outros atores limita a construção dos apoios necessários a qualquer aventura autoritária, especialmente em um contexto em que as Forças Armadas seguem apartadas da vida política do país.
Contudo, a ameaça autoritária representada por Javier Milei não pode ser subestimada apenas porque as condições para uma escalada autoritária ainda são restritas. Outras formas de retrocesso permanecem possíveis e, se mantida a forma de condução adotada nestes meses iniciais, a presidência de Javier Milei se encaminha para ser o mais duro teste de resiliência imposto às instituições argentinas nas últimas quatro décadas.
*Matheus de Oliveira Pereira é pesquisador do INCT – INEU e do GEDES, Universidade Estadual Paulista (Unesp)
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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