Um legado torturado e mortal: Kissinger e a realpolitik na política externa dos Estados Unidos
Prestes a completar cem anos, ex-secretário de Estado americano influenciou de forma marcante a posição internacional dos EUA com sua visão amoral e com foco nos interesses nacionais, o que produziu um conjunto de desastres para a diplomacia do país, argumenta o cientista político Jarrod Hayes
Prestes a completar cem anos, ex-secretário de Estado americano influenciou de forma marcante a posição internacional dos EUA com sua visão amoral e com foco nos interesses nacionais, o que produziu um conjunto de desastres para a diplomacia do país, argumenta o cientista político Jarrod Hayes
Por Jarrod Hayes*
Em 2023, Henry Kissinger completará um século desde seu nascimento e mais de 50 anos de influência na política externa americana. O centenário de Kissinger representa uma importante oportunidade para refletir não apenas sobre sua influência, mas também sobre os efeitos da visão de política externa que ele adotou.
Sou um estudioso da política externa americana que escreveu sobre o serviço de Kissinger de 1969 a 1977 como conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado sob os governos Nixon e Ford. Eu vi como suas visões e ações de política externa funcionaram para o bem e, principalmente, para o mal.
Quando Kissinger entrou no governo como conselheiro de segurança nacional de Richard Nixon, ele adotou uma perspectiva estreita do interesse nacional, conhecida como “realpolitik”, centrada principalmente na maximização do poder econômico e militar dos Estados Unidos.
Essa abordagem de política externa voltada para o poder e para o transacionalismo produziu uma série de resultados destrutivos. Eles variaram de fomentar golpes que instauraram ditaduras assassinas, como no Chile, a matar civis desarmados, como no Camboja, e alienar potenciais aliados, como na Índia.
Abordagem prejudicial
Em sua dissertação que virou primeiro livro, Kissinger argumentou que os formuladores de política externa são medidos por sua capacidade de reconhecer mudanças no poder político, militar e econômico no sistema internacional – e, em seguida, fazer essas mudanças funcionarem a favor de seu país.
Nesse modelo de política externa, os valores políticos – democracia, direitos humanos – que fazem dos Estados Unidos um ator diferenciado no sistema internacional não têm nenhum papel.
Essa perspectiva, com sua agenda autodeclarada realista, juntamente com o lugar de Kissinger no topo do establishment da política externa como conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado por quase uma década, fez de Kissinger uma espécie de oráculo de política externa para políticos americanos de todos os matizes.
No entanto, o histórico de Kissinger revela os problemas com a concepção estreita de interesse nacional desprovido de valores. Seu tempo no governo foi caracterizado por grandes decisões políticas que geralmente eram prejudiciais à posição dos Estados Unidos no mundo.
Carnificina no Camboja
Quando Nixon assumiu o cargo em 1968, ele havia prometido um fim honroso para a Guerra do Vietnã.
Nixon enfrentou um problema, no entanto, ao tentar obter o controle do conflito: a porosidade das fronteiras do Vietnã com o Camboja, por onde suprimentos e soldados do Vietnã do Norte fluíam para o sul.
Para resolver esse problema, Nixon intensificou dramaticamente uma campanha de bombardeio no Camboja iniciada por seu antecessor, o presidente Lyndon Johnson. Nixon mais tarde iniciou uma invasão terrestre do Camboja para cortar as rotas de abastecimento norte-vietnamitas.
Como detalha William Shawcross em seu livro definitivo sobre o assunto, Kissinger apoiou a política de Nixon para o Camboja.
Apesar do fato de o Camboja não ter participado do conflito travado no Vietnã, estima-se que o bombardeio dos EUA no Camboja tenha excedido a tonelagem total de todas as bombas lançadas pelos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki.
A campanha matou dezenas de milhares de cambojanos e deslocou milhões. A destruição causada pelo bombardeio, bem como a ocupação americana parcial em 1970, foram cruciais para criar a instabilidade política e social que facilitou a ascensão do regime genocida do Khmer Vermelho. Estima-se que esse regime tenha matado 2 milhões de cambojanos.
Apoio a líder genocida
Em 1970 e 1971, Nixon, com o conselho e incentivo de Kissinger, apoiou o presidente ditatorial do Paquistão, Yahya Khan, em sua repressão genocida aos nacionalistas bengalis e na guerra contra a Índia.
Estima-se que esse conflito tenha matado pelo menos 300 mil e possivelmente mais de um milhão de bengalis. Khan visava a eliminação completa dos hindus no que se tornaria Bangladesh.
Frustrado com a pressão da Índia sobre a subsequente crise de refugiados, Kissinger concordou com Nixon que a Índia – uma democracia que carrega o fardo de milhões de refugiados do Paquistão Oriental – precisava de uma “fome em massa” para colocar o país em seu lugar.
A dupla chegou a enviar um grupo de batalha de porta-aviões para ameaçar a Índia depois que ela sofreu uma série de ataques transfronteiriços do Paquistão.
A política de Nixon e Kissinger em apoio ao Paquistão durante um período de brutalidade e agressão sem verniz desempenhou um papel significativo em empurrar a Índia para um alinhamento com a União Soviética. Nixon e Kissinger injetaram desconfiança nos Estados Unidos nas bases da política externa indiana, dividindo as maiores e mais antigas democracias do mundo por décadas.
Explorando os curdos, fortalecendo Saddam
Em 1972, Kissinger concordou com um pedido do xá do Irã para fornecer ajuda militar aos curdos no Iraque que buscavam uma pátria independente. O objetivo do Irã era pressionar o regime iraquiano controlado por Saddam Hussein, enquanto Kissinger procurava manter os soviéticos fora da região. O esquema baseava-se na crença dos curdos de que os Estados Unidos apoiavam a independência curda, um ponto observado pelo xá. Mas os EUA abandonaram os curdos na véspera de uma ofensiva iraquiana em 1975, e Kissinger observou friamente que “ação secreta não deve ser confundida com trabalho missionário”.
Em última análise, a derrota iraquiana dos curdos daria poder a Hussein, que desestabilizaria a região, mataria centenas de milhares de pessoas e travaria guerras não provocadas com o Irã e os Estados Unidos.
‘Visão amoral’
Depois que Kissinger deixou o serviço público em 1977, ele fundou a Kissinger Associates, uma empresa de consultoria geopolítica. Publicamente, Kissinger sempre aconselhou os formuladores de políticas dos EUA a redobrar a política dos EUA para acomodar os interesses e ações de importantes potências estrangeiras como Rússia e China.
Essas posições são consistentes com a disposição demonstrada de Kissinger de negociar os direitos de outros para obter vantagem para os EUA. Suas posições também presumivelmente permitem que a Kissinger Associates mantenha o acesso às elites da política externa desses países.
Em maio de 2022, Kissinger argumentou publicamente que a Ucrânia, vítima de agressão não provocada pela Rússia, deveria ceder partes de seu território internacionalmente reconhecido apreendidos pela Rússia – como na Crimeia – ou por procuradores russos, como a República Popular de Donetsk.
Kissinger também sustentou que os Estados Unidos deveriam acomodar a China, argumentando contra um esforço conjunto das democracias para conter o crescente poder e influência da China.
A política externa é um campo difícil, repleto de complexidade e consequências imprevistas. A visão de Kissinger, no entanto, não oferece uma panaceia para o desafio da política externa americana.
Ao longo de décadas, a visão amoral de Kissinger de autointeresse nacional produziu seu próprio conjunto de desastres, uma realidade que o público americano e os líderes de política externa devem ter em mente.
*Jarrod Hayes é professor de ciência política na UMass Lowell
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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