20 setembro 2022

‘A reviravolta estética do Brasil’: como construímos, e perdemos, a imagem de uma nação emergente, progressista e acolhedora ao longo da última década.  

Apresentações do país nas Olimpíadas de 2012 e 2016 reforçaram a imagem progressista e responsável da nação, mas essa representação do Brasil é confrontada com a ideia que se faz do país nos dias de hoje: uma nação dividida após seguidos anos de crises e governada por uma agenda reacionária, que parece não se importar com como o país é visto pelos seus pares

Apresentações do país nas Olimpíadas de 2012 e 2016 reforçaram a imagem progressista e responsável da nação, mas essa representação do Brasil é confrontada com a ideia que se faz do país nos dias de hoje: uma nação dividida após seguidos anos de crises e governada por uma agenda reacionária, que parece não se importar com como o país é visto pelos seus pares

Cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016 no Estádio do Maracanã. (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Por Daniel Malanski*

Há pouco mais de dez anos, no dia 12 de agosto de 2012, o Brasil fazia a sua apresentação na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres. Cerca de 750 milhões de pessoas, em mais de 200 países ao redor do mundo, acompanhavam o ato teatral do país que seria, em breve, anfitrião de dois dos eventos esportivo mais importantes do planeta: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas do Rio de 2016. Naquele momento, o Brasil era visto como um país emergente, dono da sétima maior economia global e um importante ator no cenário político internacional. Durante a apresentação, o comitê selecionado para organizar os Jogos Olímpicos do Rio buscou passar a imagem de um país alegre, promissor e diverso –pronto para se tornar protagonista dentro do concerto das nações.    

No artigo “A reviravolta estética do Brasil: de nação emergente a pária internacional”, publicado recentemente na revista Significação da ECA-USP, analiso a imagem que diferentes governos brasileiros buscaram dar ao país ao longo da última década. Para isso, descrevo como os atos teatrais do Brasil nos jogos de Londres 2012, e na cerimônia de abertura das Olimpíadas de 2016, fizeram referências a certos mitos presentes dentro do imaginário internacional a respeito do país, com o intuito de reforçar a imagem progressista e ecologicamente responsável da nação. Essa representação do Brasil é então confrontada com a ideia que se faz do país nos dias de hoje: uma nação dividida após seguidos anos de recessão econômica e crises políticas –governada por uma agenda reacionária, que parece não se importar com o meio-ambiente, e muito menos com como o país é visto pelos seus pares.  

O texto começa com um breve recorte histórico a respeito da imagem do Brasil no exterior. Do seu “descobrimento” –quando passa a cativar o imaginário ocidental como um território repleto de planícies verdes e pássaros coloridos– até o momento em que se consolida como uma voz importante entre as nações emergentes nas questões relacionadas ao aquecimento global e à redução das emissões de CO².  Em seguida, o artigo lembra 2009: ano em que a imagem do Cristo Redentor decolava na capa da The Economist e em que a cidade do Rio de Janeiro vencia a concorrência algumas das principais economias mundiais –com maior experiência na organização de megaeventos esportivos– e era enfim escolhida como futura sede Olímpica.   

A partir daí, o artigo passa a analisar a participação de Renato Sorriso na cerimônia de encerramento dos Jogos de Londres. O passista –que anos antes havia se tornado conhecido nacionalmente por dançar com a sua vassoura enquanto limpava a Passarela do Samba no Rio de Janeiro– surge em cena vestido com o tradicional uniforme laranja dos garis cariocas. Ele varre o chão do estádio Olímpico de Londres quando é surpreendido por um feixe de luz. Aproveitando seus segundos de fama, Sorriso mostra seus passos de samba para o mundo. Ele é rapidamente interrompido por um segurança britânico, que tenta o tirar de cena. O segurança, no entanto, é capturado pelo carisma de Sorriso e também acaba caindo no samba.

‘Pela primeira vez, uma nação sul-americana, região historicamente considerada periférica na perspectiva do sistema mundial, seria a próxima sede dos maiores megaeventos do planeta’

Como argumento no texto, “ao recusar-se a ser levado pelo segurança britânico a um mundo de regras e restrições sociais, Sorriso termina por transportá-lo ao seu universo de alegria e liberdade, subvertendo assim uma série de ordens hierárquicas socialmente construídas: europeu/sul-americano; branco/negro; autoridade/subalterno; comedimento/imoderação. Desta maneira, devido à natureza amigável e festiva de Sorriso (…), o segurança acaba esquecendo o caráter dogmático de sua profissão e, tomado por curiosidade e alegria, deixa-se levar pela cultura estrangeira”. Tal ato teatral, portanto, pode ser interpretado como metonímia para o momento que era vivido pelo país. Pela primeira vez, uma nação sul-americana, região historicamente considerada periférica na perspectiva do sistema mundial, seria a próxima sede do maior megaevento do planeta. Sorriso, portanto, encarnaria o Brasil, uma nação que já não passava mais despercebida –disposta a mostrar ao mundo o que julgava ter de melhor.

O artigo continua por analisar os atos subsequentes da cerimônia. O sincretismo religioso nacional é representado por Iemanjá, interpretada pela cantora Marisa Monte. Originaria da religião iorubá e trazida para o país por meio do tráfico de escravos no Atlântico Sul (1533-1851), a Deusa do Mar se funde com crenças cristãs (como Nossa Senhora dos Navegantes e Nossa Senhora da Conceição), bem como com ídolos da mitologia tupi-guarani, com Y-îara ou Iara: A Senhora das Águas, passando a ser reverenciada por brasileiros de diferentes credos na orla costeira do país durante as festividades de Réveillon.

Nossa miscigenação étnica e cultural também fica evidente na maneira como a trilha sonora se desenvolve através do ato –de Villa-Lobos ao manguebeat, passando por cantos ritualísticos indígenas. No campo visual, essa geleia geral é traduzida por ameríndios ultramodernos dançando ao lado de sambistas e de um cortejo de maracatu.

A performance teatral que, até então, visava fortalecer a imagem do Brasil como país onde a diversidade é celebrada parece esbarrar na escolha do Canto das Três Raças, de Clara Nunes, para dar continuidade ao ato. “Embora a canção não negue que o Brasil, enquanto nação, tenha sido formado pela mistura de ameríndios, africanos e portugueses, ela vai contra a crença popular de que esses três povos deram origem a uma nação alegre e despreocupada, livre do ódio racial e da opressão”, diz o artigo. A letra do samba de Clara Nunes –que manifestamente não é ouvida durante a cerimônia, uma vez que a canção apresentada se atém a sua melodia– foi lançada em 1976, durante a gradual abertura política do governo Geisel. Na canção, Nunes denuncia o fato de que “ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil”, um canto que, segundo a cantora, deveria ser de alegria.

Apesar da crítica velada ao mito da democracia social brasileira, a mensagem passada era, apesar de utópica, positiva. Isso se deve também ao momento que era vivido pelo Brasil em 2012, o que faz com que o seu significado social acabe por extrapolar os jogos olímpico e o mundo dos esportes. “Pela primeira vez na história, uma potência global bem estabelecida –que, no passado, foi uma das principais forças motrizes por trás da expansão global da modernidade ocidental– passava a bandeira olímpica para um país sul-americano”, ressalto.

‘No entanto, já em 2013, um ano antes do início da Copa do Mundo FIFA 2014, a boa imagem do Brasil no exterior começa a ruir’

No entanto, já em 2013, um ano antes do início da Copa do Mundo FIFA 2014, a boa imagem do Brasil no exterior começa a ruir. Casos de desvio de dinheiro público, fraudes e superfaturamento durante a construção dos estádios para a copa levavam milhares às ruas. Os manifestantes se juntavam a uma massa heterogênea de descontentes –que pedia melhorias no sistema de saúde publica e passagens de ónibus mais baratas e que se mostrava insatisfeita com a corrupção sistemática das elites empresariais e políticas. Nos noticiários estrangeiros, as imagens da brutalidade das forças policiais brasileiras para com os manifestantes se multiplicavam, simbolizando, portanto, o início de uma profunda crise sociopolítica e econômica que culminaria com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016.

Dando continuidade ao que foi apresentado em 2012, as cerimônias dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016 reforçavam a narrativa de um país multiétnico, multicultural e diverso. Nesse sentido, talvez a participação mais significativa dentro do evento tenha sido a da modelo transgênero Leandra Medeiros Cerezo –convidada a carregar o cartaz com o nome “Brasil” à frente dos atletas do país-sede no desfile das nações. Além disso, a abertura dos jogos em 2016 buscava mostrar que o Brasil poderia contribuir para o projeto moderno enfrentando duas das principais questões centrais da modernidade eurocêntrica: a intolerância étnica e a degradação ambiental por meio de uma viagem através do tempo, desde a gênese em Pindorama ao Brasil contemporâneo, passando pela exibição de um Brasil pré-cabraliano, pela chegada dos portugueses e pela representação da escravidão no país.

As seguidas crises econômicas, o controverso impeachment da presidente Dilma Rousseff, a polêmica prisão do ex-presidente Luiz Lula da Silva, assim como a surpreendente vitória de um candidato da extrema-direita nas eleições presidenciais de 2018, agravavam a polarização política dentro do país. Enquanto a crescente tensão social expunha “um país de contrastes, onde mundos opostos competem pela nação como espaço sociopolítico e objeto simbólico”, a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto trazia com ela a ruptura com a agenda nacional progressista iniciada com a redemocratização do país e o advento da Nova República, em 1988.

‘A chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto trazia com ela a ruptura com a agenda nacional progressista iniciada com a redemocratização do país e o advento da Nova República’

A reviravolta estética da nação termina por se materializar no veto publicitário ao Banco do Brasil –quando um comercial televisivo que mostrava moças e rapazes negros e mestiços, incluindo uma modelo transgênero– é tirado do ar pelo presidente por não representar os valores ligados “à família”, que, segundo ele, ditavam a nova linha de representação da nação.

Se, no exterior, a imagem de um país emergente, responsável e progressista parecia cada vez mais distante, ela se deteriora ainda mais devido à política de hostilidade do governo Bolsonaro com importantes parceiros econômicos –como membros da União Europeia e a China– e a sua posição com relação ao desmatamento na região amazônica e à redução de áreas protegidas. Assim, o país passava de uma das vozes mais influentes dentre os países considerados emergentes, no que diz respeito a políticas internacionais que visam à conservação ambiental, para a posição de pária internacional.   


*Daniel Malanski é Irish Rearch Council Postdoctoral Fellow no departamento de história da University College Dublin, na Irlanda. Ele é doutor em História Cultural pela Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris 3, França, e em Comunicação Audiovisual pela Universidad Autónoma de Barcelona, Espanha.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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