05 outubro 2022

A guerra comercial e as relações econômicas sino-brasileiras no setor do petróleo: possíveis impactos

Oscilações comerciais sino-estadunidenses não parecem ter causado um desvio de comércio que tenha influenciado direta e negativamente o comércio sino-brasileiro de óleo cru. Movimentos recentes de empresas chinesas reforçam a tese de que o Brasil se tornou um dos portos seguros para receber investimentos de petroleiros chinesas

Oscilações comerciais sino-estadunidenses não parecem ter causado um desvio de comércio que tenha influenciado direta e negativamente o comércio sino-brasileiro de óleo cru. Movimentos recentes de empresas chinesas reforçam a tese de que o Brasil se tornou um dos portos seguros para receber investimentos de petroleiras chinesas

Por Pedro Henrique Batista Barbosa*

Desde o início da guerra comercial entre EUA e China, um dos principais temas de debate e preocupação em meios governamentais e empresariais mundiais foi quais seriam os impactos do comércio administrado entre as duas potências sobre os demais países. Análises sobre eventuais rupturas em cadeias globais de valor tornaram-se recorrentes, bem como pesquisas sobre desvios de comércio e de investimentos frutos da elevação mútua de tarifas alfandegárias e da posterior assinatura do acordo Fase 1. Nestes estudos, os demais países eram classificados como perdedores ou ganhadores, a depender de como suas pautas exportadora e importadora e seus níveis de investimentos estrangeiros diretos (IED) foram afetados pelas medidas restritivas de comércio adotadas e pelo posterior acerto bilateral para Pequim aumentar suas compras de Washington.

O caso do Brasil não foi diferente. Não faltaram análises sobre os impactos na economia nacional, sobretudo por que China e EUA são o primeiro e o segundo maiores parceiros comerciais brasileiros, responsáveis conjuntamente por cerca de 42% do comércio exterior em 2021. Desde 2009, a República Popular da China (RPC) é o maior sócio comercial do Brasil – ultrapassando os EUA – e, desde 2012, o principal destino das exportações, que historicamente são dominadas por produtos básicos, sobretudo soja, minério de ferro e petróleo.

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E foi sobre a soja que se baseou a maioria expressiva das análises sobre os impactos da guerra comercial sobre o Brasil, muito em função da importância do produto na balança comercial bilateral e pelo fato de os EUA serem competidores diretos no mercado chinês. Em 2021, por exemplo, o Brasil exportou mais de 30% de seus bens ao país oriental, sendo que a oleaginosa respondeu por quase um terço do total em valor. Brasil e EUA sempre competiram pelo posto de principal fornecedor de produtos agrícolas e, em especial, de soja para a China. Logo, a diminuição das exportações norte-americanas da oleaginosa após o aumento inicial mútuo de tarifas alfandegárias e o posterior potencial aumento das vendas após a assinatura do acordo Fase 1 incentivaram muitos estudos, por causa dos impactos diretos que estes dois cenários causariam no comércio agrícola entre Brasil e China.

‘O Brasil responde por cerca de 6% das compras externas chinesas de petróleo e foi o oitavo maior fornecedor chinês em 2021’

Curiosamente, pouca atenção foi dada aos impactos da guerra comercial sobre o comércio sino-brasileiro de petróleo. Este é o terceiro principal produto nacional exportado à China e historicamente é responsável por cerca de um quinto das vendas brasileiras. Em 2021, foram US$ 14 bilhões em exportações. Tal como a soja, a China é o principal destino do óleo cru brasileiro exportado e é para onde vai metade das vendas globais da commodity. O Brasil, por sua vez, responde por cerca de 6% das compras externas chinesas da commodity e foi o oitavo maior fornecedor chinês em 2021.

Como é o caso do comércio de soja, os EUA são um competidor relevante no mercado importador chinês de petróleo. Em 2021, ficaram logo atrás do Brasil e ocuparam a décima posição na classificação dos maiores exportadores à China. Assim que foram definidas a elevação de tarifas e o compromisso de compra dentro do acordo Fase 1, começaram a surgir questionamentos acerca da influência que essas medidas poderiam causar nas exportações brasileiras à China.

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A guerra comercial começou oficialmente em julho de 2018, quando as primeiras tarifas foram implementadas por ambos os lados, mas, somente a partir de setembro de 2019, o comércio sino-norte-americano de petróleo passou a oscilar negativamente. A partir do dia 1º deste mês, a China impôs uma taxa de 5% nas compras da commodity norte-americana, em retaliação a tarifas impostas pelos EUA sobre uma gama de produtos chineses. Esta foi a terceira rodada de elevação mútua de tarifas alfandegárias. Esta decisão teve impacto considerável nas importações chinesas de óleo cru, que decresceram quase 50%, caindo de 90 milhões para 47 milhões de barris. Tratou-se de uma queda mais significativa do que as dos demais produtos tarifados na mesma rodada, cuja diminuição foi, em média, de 25%.

Petróleo foi uma das commodities incluídas no acordo Fase 1, assinado em janeiro de 2020. Na parte referente a produtos energéticos (capítulo 6.2), ficou acordado que as compras chinesas de gás natural liquefeito (GNL), óleo cru, produtos refinados e carvão deveriam aumentar em US$ 52,4 bilhões até o final de 2021 sobre os níveis de importação de 2017. Tal acerto parece ter dado resultado num primeiro momento. Em 2020, as importações chinesas de óleo cru dos EUA cresceram 210% e alcançaram 145 milhões de barris. À época, os EUA tornaram-se o nono maior fornecedor chinês, responsável por cerca de 4% das compras externas da RPC. Contudo, em 2021, nova queda no comércio bilateral de petróleo. A China comprou somente 80 milhões de barris.

‘As importações chinesas de petróleo brasileiro cresceram continuadamente até 2020, quando atingiram seu ápice histórico (309 milhões de barris)’

Aparentemente, as oscilações comerciais sino-estadunidenses não parecem ter causado um desvio de comércio que tenha influenciado direta e negativamente o comércio sino-brasileiro de óleo cru. As importações chinesas de petróleo brasileiro cresceram continuadamente até 2020, quando atingiram seu ápice histórico (309 milhões de barris). Entre 2014 e 2019, a média de crescimento das compras chinesas do produto do Brasil foi de 42%. Em 2021, no entanto, quando as aquisições dos EUA caíram, a China também importou significativamente menos do Brasil (206 milhões de barris).

Numa interpretação tentativa dos impactos do acordo Fase 1, poder-se-ia ventilar a hipótese de que o aumento súbito das compras dos EUA influenciou as importações da China do Brasil. As compras chinesas dos EUA passaram de 47 para 145 milhões de barris entre 2019 e 2020, ao passo que as do Brasil cresceram somente 5%, bem menos do que o aumento evidenciado nos anos anteriores. Em 2021, contudo, as importações globais chinesas da commodity diminuíram, a RPC comprou menos do EUA e do Brasil.

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Situação distinta parece ter ocorrido no campo dos investimentos energéticos entre EUA e China. Tal como as transações comerciais, análises de investimentos são influenciadas pelos ambientes político e empresarial do país receptor e, em caso de restrições estruturais a IEDs, os fluxos de novos investimentos podem ser desviados para outros países. Negócios já instalados podem igualmente migrar para outras regiões. A Unctad identificou que companhias chinesas e multinacionais de alguns setores passaram a deslocar sua produção da China continental para outros países, sobretudo do Sudeste Asiático, como forma de evitar as tarifas elevadas e a instabilidade causada pelas tensões geopolíticas.[1]

Desde a eleição de Donald Trump, quando ativos chineses nos EUA passaram a ser objeto de escrutínio e restrições com base em argumentos de segurança nacional, empresas chinesas diminuíram sistematicamente seus investimentos nos EUA. Segundo dados do China Global Investment Tracker[2], após recorde histórico de US$ 54 bilhões em 2016, os números caíram ano após ano. Os fluxos para o setor energético norte-americano não foram uma exceção e mantiveram tendência de queda[3]. Após anos de investimentos oscilantes, mas regulares e na casa dos bilhões, os aportes caíram para o patamar de centenas de milhões em 2016 e nos anos seguintes. Em 2018 e 2019, não houve nenhum desembolso de companhias energéticas chinesas nos EUA.

Coincidência ou não, ao mesmo tempo que os investimentos energéticos chineses nos EUA caíam, os mesmos no Brasil cresciam. Os IEDs chineses tiveram anos de grandes desembolsos entre 2010 e 2013, seguidos por dois anos de números pouco significativos. No entanto, a partir de 2016, os aportes de empresas petrolíferas chinesas no país iniciaram uma tendência de expressiva e contínua alta – com exceção do primeiro ano de pandemia de Covid-19, em 2020 – e atingiram quase US$ 5 bilhões em fins de 2021. Aliás, neste ano, o Brasil foi o país que mais recebeu investimentos chineses no mundo, fato inédito.

‘Diante de medidas restritivas e ambiente de negócios incerto na América do Norte, as petroleiras chinesas destinaram esforços e atenções para destinos alternativos, sendo o Brasil um deles’

Com base nessas duas realidades distintas, seria possível aventar a hipótese de que a guerra comercial impactou positivamente os fluxos de IEDs chineses ao setor de petróleo brasileiro. Diante de medidas restritivas e ambiente de negócios incerto na América do Norte, as petroleiras chinesas destinaram esforços e atenções para destinos alternativos, sendo o Brasil um deles.

O Brasil oferecia um cenário empresarial distinto dos EUA. O descobrimento da camada do pré-sal revolucionou o setor petrolífero local. Em período de tempo relativamente curto, o país passou de importador para significativo exportador de petróleo, após sua produção nacional crescer a passos largos, ano após ano. Além disso, o setor mostrava-se aberto a investidores estrangeiros, entre os quais os chineses, que buscavam explorar as oportunidades trazidas pela nova fronteira energética.

Movimentos recentes de empresas chinesas reforçam a tese de que o Brasil se tornou um dos portos seguros para receber investimentos de petroleiras chinesas. Reportagens internacionais de abril de 2022 afirmaram que a CNOOC teria planos de vender suas operações nos EUA, Canadá e Reino Unido, por receio de que seus ativos sejam alvos de sanções. Possíveis novos destinos seriam Brasil, Guiana e Uganda.[4]

‘O Brasil se tornou um dos portos seguros para receber investimentos de petroleiras chinesas’

Vale lembrar que a CNOOC tem histórico de enfrentar obstáculos no mercado norte-americano. Em 2005, por exemplo, abandonou tentativa de comprar a Unocal, devido à oposição de Washington. Em junho de 2021, ordem executiva assinada por Biden a incluiu em lista de empresas chinesas proibidas de negociar nos EUA produtos e serviços relacionados a segurança nacional. Por fim, em outubro de 2021, a empresa foi excluída da Bolsa de Nova York.

Em que pese seu destaque na pauta exportadora a Pequim e o fato de os EUA serem competidores do Brasil no mercado chinês, o óleo cru esteve ausente das principais análises sobre os efeitos da guerra comercial nos laços comerciais e empresariais entre Brasil e China. Um dos motivos está no fato de que a República Popular possui menos supridores de soja do que de petróleo. Basicamente, Brasil e EUA vendem a oleaginosa à China. Logo, oscilações na compra ou venda de um deles diretamente impacta os negócios do outro. O quadro de fornecedores de petróleo é mais amplo e diversificado. Mais de uma dezena de Estados seriam os principais fornecedores chineses da commodity energética. Movimentos bruscos no comércio bilateral com um dos parceiros são mais facilmente absorvidos e compensados por outros exportadores.

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Outro motivo está no fato de que as evidências de impactos econômicos estariam menos claras nas trocas comerciais e mais nítidas nos fluxos de investimentos. As oscilações para cima e para baixo do comércio sino-norte-americano nos últimos anos de guerra comercial não parecem ser os fatores definidores da perda de ímpeto do crescimento das vendas brasileiras à China em 2020 e posterior queda substantiva em 2021. Este freio nas exportações brasileiras a Pequim estaria mais ligado, por exemplo, a condições internas (diminuição das importações chinesas em 2021) e a dinâmicas do mercado mundial produtivo de petróleo.

No entanto, no caso de investimentos, já é possível arriscar uma relação mais direta entre a diminuição dos aportes chineses nos EUA e o concomitante aumento no Brasil. Apesar da volatilidade inerente dos IEDs no mundo e do risco de identificar certos movimentos de capital como substitutivos diretos de outros, a experiência triangular entre Brasil, EUA e China abre margens a interpretar uma relação mais direta de causa e efeito. Enquanto o cenário taxativo e instável nos EUA afastava investimentos chineses, o Brasil apresentava uma nova fronteira petrolífera de grande potencial e aberta à competição internacional.


*Pedro Henrique Batista Barbosa é doutor em política internacional pela Renmin University of China e diplomata. Este artigo é parte da tese de doutorado do autor. As opiniões expressas aqui não refletem as do Ministério das Relações Exteriores.


Referências

[1] World Investment Report 2021 (https://unctad.org/system/files/official-document/wir2021_en.pdf) [pg 54]

[2] AEI. (2022). “China Global Investment Tracker”. American Enterprise Institute. [Online]. Available at: <https://www.aei.org/china-global-investment-tracker/>.

[3] Por questões metodológicas da base de dados, destacam-se aqui os investimentos chineses no setor energéticos dos EUA como um todo.

[4] Reuters. Disponível em: <https://www.reuters.com/business/energy/exclusive-chinas-oil-champion-prepares-western-retreat-over-sanctions-fear-2022-04-13/>.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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