Brasil e EUA mostram que eleições seguras exigem um acordo, não apenas segurança cibernética e registros eleitorais claros
falhas processuais, mas a falta da defesa dos princípios democráticos fundamentais. Para pesquisador de integridade eleitoral, as verdadeiras democracias exigem candidatos que concordem com as regras e processos eleitorais com antecedência e aceitem respeitar o resultado das eleições independentemente dos resultados delas
Questionamentos violentos dos resultados das eleições nos dois países não são resultado de falhas processuais, mas a falta da defesa dos princípios democráticos fundamentais. Para pesquisador de integridade eleitoral, as verdadeiras democracias exigem candidatos que concordem com as regras e processos eleitorais com antecedência e aceitem respeitar o resultado das eleições independentemente dos resultados delas
Por Herbert Lin*
Existem várias maneiras de realizar uma eleição legítima. Mas os EUA aprenderam nos últimos anos, e o Brasil aprendeu nas últimas semanas, que nem sempre é simples.
Existem mecanismos técnicos e processos de como os votos são lançados, coletados e contados. Mas esses são, em última análise, menos importantes do que o acordo – entre as partes opostas e em toda a sociedade – para respeitar os resultados desses processos.
Em 2020, o presidente Donald Trump alegou, sem provas, que fraude eleitoral em vários estados o levou a perder. Várias auditorias em vários estados não encontraram evidências de que irregularidades nos processos de votação ou contagem de votos tivessem qualquer efeito sobre o resultado da votação nesses estados.
Alguns desses resultados foram posteriormente contestados em ações judiciais que buscavam alterar os resultados da eleição e, em todos os casos, o resultado da eleição foi considerado preciso.
Embora a grande maioria dessas questões, verificações e decisões judiciais tenham sido concluídas antes da reunião do Congresso para contar os votos do Colégio Eleitoral em 6 de janeiro de 2021, os apoiadores de Donald Trump e vários grupos de milícias invadiram o Capitólio dos EUA em uma tentativa de interromper a contagem e deixar Trump se declarar presidente.
No Brasil, no final de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro perdeu uma eleição para Luiz Inácio Lula da Silva, um ex-presidente que buscava retornar ao cargo. Antes mesmo da eleição, Bolsonaro já havia questionado a integridade do sistema de votação do país. Em 8 de janeiro de 2023, depois que Lula estava no cargo há uma semana, milhares de apoiadores de Bolsonaro, incluindo militantes de extrema-direita, atacaram prédios importantes do governo, incluindo o prédio que abriga o Congresso Nacional.
Como um estudioso que estuda integridade eleitoral e segurança cibernética, vejo a origem dessas disputas violentas não como resultado de falhas processuais ou técnicas no sistema de votação, mas sim como uma falha de certos indivíduos que vivem em sociedades democráticas em defender os princípios fundamentais da democracia.
Um conjunto de princípios
Eu e outros em meu campo tendemos a concordar, e acho que a maioria das pessoas comuns também concordaria, que os funcionários eleitorais devem aspirar aos seguintes critérios básicos:
- Toda pessoa com direito legal de voto pode votar em uma determinada eleição.
- Nenhuma pessoa sem direito legal de voto pode votar.
- Nenhuma pessoa está autorizada a lançar mais de uma cédula.
- Cada cédula indica inequivocamente a preferência do eleitor.
- Cada cédula lançada por um eleitor legalmente legítimo é contada, mas nenhuma outra cédula é contada.
- Nenhuma cédula lançada pode ser associada ao eleitor que depositou a cédula (ou seja, os eleitores podem manter o sigilo de suas cédulas).
Para ajudar a manter esses padrões, muitos analistas de segurança eleitoral, inclusive eu, acreditam que os registros em papel são um elemento essencial dos sistemas de votação eletrônica. Eles deixam em aberto a possibilidade de recontagem das cédulas em caso de reclamação de que as cédulas eletrônicas foram contadas incorretamente. Em geral, apenas pessoas que parecem ter perdido as eleições fazem essas reivindicações, embora as leis de alguns estados exijam recontagens automáticas quando a margem de diferença for pequena.
Mas o Brasil acabou totalmente com o voto em papel. As autoridades eleitorais do país tomam muitas medidas para garantir que as urnas eletrônicas estejam funcionando corretamente e não sejam adulteradas, incluindo o teste de uma grande amostra das máquinas no dia da eleição, obtendo análises de terceiros de pelo menos partes de seu software e garantindo eles não estão conectados à internet, para aumentar sua proteção contra hackers.
Mas nenhuma combinação dessas medidas, nem nenhuma das outras proteções, como a publicação pública da contagem dos votos e a exigência de que os eleitores usem suas impressões digitais para desbloquear as máquinas de votação ou apresentar uma identificação com foto aos mesários, é totalmente infalível.
As cédulas de papel também não são infalíveis: cédulas fraudulentas podem ser fabricadas e inseridas no processo de contagem sem serem detectadas. As cédulas podem ser irremediavelmente destruídas depois de lançadas. Marcas feitas de forma inadequada em uma cédula podem não indicar claramente a intenção do eleitor. Humanos engajados no esforço cansativo de contar milhares de cédulas cometem erros. A contagem das cédulas de papel leva um tempo considerável que os partidos descontentes podem usar para semear dúvidas infundadas sobre a integridade da eleição.
Sistemas de votação baseados em papel projetados de forma inteligente tomam medidas para melhorar todos esses problemas. Mas, assim como no caso da votação eletrônica, é uma questão de julgamento humano decidir se essas proteções resultam em um nível aceitável de segurança. E garantir 100% de segurança em uma eleição é essencialmente impossível.
Eleições são necessárias
Apesar das inevitáveis falhas na votação e na contagem, as democracias precisam realizar eleições. Elas devem escolher oficiais eleitorais para quem a confiança do público na segurança das eleições é mais importante do que qualquer resultado partidário.
Outro elemento-chave da integridade eleitoral vem dos candidatos. É importante para a confiança do público nas eleições que os candidatos estejam dispostos a expressar seu próprio apoio ao sistema de votação, incluindo quaisquer medidas estabelecidas para integridade e recontagem, mesmo que esse sistema lhes dê uma derrota.
A proposição básica da democracia é que todos os candidatos concordem com um determinado processo, os gestores eleitorais façam o possível para garantir que o processo se desenrole de maneira justa e todos cumpram quaisquer que sejam os resultados, não importa quem acabe perdendo.
Sem acordo mútuo no processo, é impossível ter uma eleição incontestada, porque um candidato que não gosta do resultado sempre pode alegar – mesmo sem provas – que foi de alguma forma injusto.
As verdadeiras democracias exigem candidatos que concordem com as regras e processos eleitorais com antecedência e aceitem o resultado das eleições, mesmo quando desejam que os resultados sejam diferentes. A alternativa é a contínua instabilidade e dúvida no eleitorado – um resultado que não atende aos interesses dos cidadãos.
*Herbert Lin é pesquisador sênior de política cibernética e segurança no Center for International Security and Cooperation, Stanford University.
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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