Sergio Abreu e Lima Florêncio: Brasil e OCDE – Retrocesso à vista?
A percepção do governo Lula de que o status de observador na OCDE representa uma vantagem é um equívoco e não reflete o lugar do Brasil no mundo. Para embaixador, como membro efetivo da OCDE, o país teria condições de influenciar mudanças nas regras da governança global mais compatíveis com o interesse nacional, enquanto ser observador deixa o país incapaz de influir no trajeto que deverá seguir
A percepção do governo Lula de que o status de observador na OCDE representa uma vantagem é um equívoco e não reflete o lugar do Brasil no mundo. Para embaixador, como membro efetivo da OCDE, o país teria condições de influenciar mudanças nas regras da governança global mais compatíveis com o interesse nacional, enquanto ser observador deixa o país incapaz de influir no trajeto que deverá seguir
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
O controvertido tema da acessão do Brasil à OCDE refletiu, durante muitas décadas, duas visões prevalecentes em nossa diplomacia: partidários de aliança com os países em desenvolvimento versus defensores de aproximação com o mundo desenvolvido. A OCDE, vista então como o ‘clube dos ricos’, naturalmente tinha poucos adeptos, pois o Brasil se destacava como uma das lideranças do Sul, em um mundo marcado pela clivagem Norte-Sul.
Aquele contexto, prevalecente do imediato pós-guerra até os anos 1980, justificava priorizar a ONU e considerar a OCDE um desvio de rota. O país muito perderia e pouco ganharia em aderir à OCDE.
Mas o mundo mudou: queda do Muro de Berlim; ascensão meteórica da China; perda de dinamismo da globalização; crescente tensão China-EUA; declínio da clivagem Norte-Sul. Diante de tantas transformações, com grande defasagem temporal, aos trancos e barrancos, como dizia Darcy Ribeiro, o Brasil foi também mudando.
No relacionamento com a OCDE, o ponto de inflexão foi 2017, com o pedido formal de acessão do Brasil e, cinco anos mais tarde, com o convite, formulado pela OCDE, para a abertura das discussões para nosso ingresso. Esse convite foi seguido de memorando brasileiro, com cerca de mil páginas, destinado a dar início efetivo ao processo de negociações de acessão, geralmente com conclusão prevista de três a cinco ano.
Essa aproximação parecia o desfecho da resistência histórica do Itamaraty a aproximar-se de uma instituição que simbolizava um multilateralismo menos ideológico e mais pragmático. Mas o governo Bolsonaro impedia avanços maiores e criava um paradoxo: as instâncias técnicas e institucionais promoviam a necessária aproximação, mas no plano político o presidente a bloqueava, com ataques virulentos às instituições, à democracia, ao meio ambiente, aos direitos humanos, e com a demolição da política externa brasileira.
A vitória de Lula foi um grande alívio – o país retomava o leito normal de sua trajetória democrática e, assim, estava pronto para consolidar o processo de acessão à OCDE. Apesar dos indícios de resgate desse ciclo virtuoso, mais uma ameaça de retrocesso se desenha: o governo Lula vem defendendo a revisão do processo de acessão à OCDE. Caso consumada, essa nova inflexão pode revelar-se um grande equívoco.
A percepção de integrantes do governo atual é a de que o Brasil já participa de expressivo número de comitês e órgãos da OCDE, com presença de peso na Organização, sem precisar assumir os compromissos inerentes ao status de membro pleno. Assim, nessa visão, a atual condição de observador traria bônus (conhecimento das negociações nos comitês), sem ônus (obrigatoriedade de cumprir as guidelines e best practices).
Essa percepção é equivocada por duas razões. Primeiro, porque subestima a relevância da OCDE na gestação de novas regras que moldam a governança global e nacional: comércio, políticas públicas, meio ambiente, defesa econômica, competitividade, políticas sociais, política industrial, corrupção. De fato, enquanto o multilateralismo convencional praticado na ONU e na OMC perde efetividade, novas modalidades de negociação de temas globais, personificadas nos comitês e órgãos da OCDE, ganham vigor.
A segunda razão para o equívoco resulta também de outra subestimação, dessa vez sobre o lugar do Brasil no mundo. Ora, há vários anos a OCDE deixou de ser aquele ‘clube dos ricos’ e passou a ganhar diversidade, ao integrar países como México, Chile, Colômbia, Costa Rica, Coreia do Sul e nações do antigo Leste Europeu.
Essa expansão de membros e de atribuições gerou uma aspiração legítima, no seio da organização, de incorporar grandes economias emergentes. Dentre essas, por exemplo, no âmbito do agrupamento BRICS, o Brasil tem a singularidade de, ao mesmo tempo, ser uma democracia liberal (com todas as nossas imperfeições), defender valores associados aos direitos humanos e despontar, por sua natureza, como um dos principais players na questão do meio ambiente e das mudanças climáticas. Por isso, o precedente secretário-geral Ángel Gurria era incansável defensor da acessão do Brasil à OCDE.
O governo Lula tem todas as condições para retomar o processo de acessão do Brasil à OCDE com legitimidade e força. Com isso, passaria uma mensagem de pragmatismo, de compromisso com gestão mais eficaz da máquina pública, de percepção equilibrada da nova realidade geopolítica e do papel do Brasil no mundo.
Em síntese, a OCDE é uma organização que contribui para aprimorar a governança internacional e doméstica. O Brasil é ator de peso relevante na região e, em temas específicos, no mundo. Assim, é lógico que nossa atual condição de observador está aquém do interesse nacional. A percepção do governo Lula de que o status de observador na OCDE representa uma “win win game” é um equívoco e não reflete o lugar do Brasil no mundo. Isso porque, como membro efetivo da OCDE, o país teria condições de influenciar mudanças nas regras da governança global mais compatíveis com o interesse nacional. Ao contrário, como observador, nosso destino é ver a banda passar, sem influir no trajeto que deverá seguir.
* Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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