Rubens Barbosa: A encruzilhada política da Argentina
Primárias das eleições demonstrou o fortalecimento da extrema-direita do país, que pode quebrar décadas de força do peronismo. Para embaixador, Brasil deve manter relações normais com Buenos Aires com uma politica pragmática, sem preconceito ideológico e acima de considerações partidárias, na defesa do interesse nacional
Primárias das eleições demonstrou o fortalecimento da extrema-direita do país, que pode quebrar décadas de força do peronismo. Para embaixador, Brasil deve manter relações normais com Buenos Aires com uma politica pragmática, sem preconceito ideológico e acima de considerações partidárias, na defesa do interesse nacional
Por Rubens Barbosa*
A Argentina continua sua saga politica, desta vez com a surpreendente vitoria de um candidato de extrema-direita. Javier Milei, um economista, antissistema e populista, que não estava entre os mais cotados na prévia das eleições de outubro próximo, chegou em primeiro lugar com 30% dos votos.
O terremoto eleitoral deixou o candidato do grupo peronista, Sergio Massa, atual ministro da Economia, em terceiro lugar com 27,2%. A virada para a direita colocou em segundo lugar Patricia Bullrich, ex-ministra do conservador Mauricio Macri, em coalizão com Horacio Larreta, com 28,7%.
‘A crise economica na Argentina, que se arrasta por alguns anos com grande insatisfação da população, foi a causa direta da reação dos eleitores’
A crise economica na Argentina, que se arrasta por alguns anos com grande insatisfação da população, foi a causa direta da reação dos eleitores. Aumento da pobreza, alta inflação, queda do crescimento da economia, desvalorização do peso, crise fiscal, acordo com o FMI, a divisão do partido peronista com a disputa entre o presidente Alberto Fernández e a vice-presidente Cristina Kirchner criaram o clima para a busca pelos eleitores de novos rumos para o pais.
‘A força eleitoral de Milei e de Patricia inova na politica argentina porque coloca com força um pensamento ultra-liberal como uma nova corrente em um pais, até aqui, majoritariamente peronista’
A força eleitoral de Milei e de Patricia inova na politica argentina porque coloca com força um pensamento ultra-liberal como uma nova corrente em um pais, até aqui, majoritariamente peronista. Agora a Argentina está dividido em três áreas: a ultradireita, uma direita moderada e o peronismo, em suas múltiplas facções. Nas eleições de outubro, caso essa tendência se confirme, o peronismo poderá, depois de muitos anos, ficar fora do segundo turno. O peronismo venceu 8 das ultimas 11 eleições na Argentina.
As principais propostas de Milei mostram o grau de radicalismo da estrela em ascensão: fim do Banco Central, dolarização da economia, enxugamento do Estado com a eliminação de ministérios (de 18 para 8), privatização da educação e da saúde e desregulamentação da compra de armas. Na área externa, sair do Mercosul.
Quais as implicações de uma vitoria da direita na Argentina?
Do ponto de vista doméstico, politicamente, mostra o enfraquecimento do peronismo que a mais de 60 anos domina o cenário argentino. Por outro lado, indica a emergência de um visão radical para a transformação econômica e social do pais, com o aparecimento de um grupo de direita radical demandando uma nova agenda interna. Na economia, a reação foi muito forte com a desvalorização do peso, aumento da taxa de juros e da inflação em virtude da desconfiança nos rumos do futuro governo.
‘Do ponto de vista externo, cria uma situação inusitada no Mercosul. Milei é contra o grupo regional e pretende deixar os outros tres parceiros’
Do ponto de vista externo, cria uma situação inusitada no Mercosul. Milei é contra o grupo regional e pretende deixar os outros tres parceiros. Caso venha a continuar no grupo, o Brasil, com um governo de esquerda, ficará acompanhado de governo de direita na Argentina, no Paraguai e no Uruguai. A eventual dolarização da Argentina criará um problema adicional para as transações comerciais do Mercosul.
As perspectivas eleitorais para a eleição de outubro, contudo, podem não repetir o resultado da prévia que acaba de ser realizada. O voto antigoverno e antiperonismo poderá afastar o atual ministro da economia, Sergio Massa, do segundo turno, mas poderá conduzir à Casa Rosada, sede do governo argentino, em Buenos Aires, a ex-ministra Patricia Bullrich, direitista, menos radical que Milei. Os votos de dissidentes peronistas e da direita ultra-liberal poderão vir a apoiar Bullrich, que, dessa forma, superaria os voto de Milei, que de qualquer forma teria forte representação no Congresso argentino.
‘Espera-se que Lula não se pronuncie a favor de Massa na eleição argentina, para não agravar a relação bilateral, dependendo do resultado’
Espera-se que Lula não se pronuncie a favor de Massa na eleição argentina, para não agravar a relação bilateral, dependendo do resultado. Se o resultado das urnas em outubro indicar a vitória de qualquer um dos candidatos de direita, surgirá mais uma dificuldade para a politica externa de Lula. Nesse caso, a reação do governo brasileiro deveria ser totalmente distinta daquela do governo Bolsonaro. Ao se eleger com uma plataforma de direita, Bolsonaro discutiu publicamente com Fernández (que havia apoiado o candidato do PT, Fernando Haddad) e congelou as relações com a Argentina, tornando-se o primeiro presidente brasileiro que passou quatro anos sem conversar com o presidente argentino.
O governo Lula, em função dos diversificados interesses brasileiros com nosso vizinho, deveria manter relações normais com Buenos Aires com uma politica pragmática, sem preconceito ideológico e acima de considerações partidárias, na defesa do interesse nacional.
*Rubens Barbosa foi embaixador do Brasil em Londres e em Washington, DC., é diplomata, presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e coordenador editorial da Interesse Nacional.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional