O Brasil e o G20 na paz em suspenso
País tem defendido a necessidade de adaptar a governança internacional à emergência de novos atores e desafios globais. Em tempos de escassez de lideranças, a legitimidade democrática emana da capacidade de gerar avanços sociais no plano interno e estabilidade política no plano externo
O Brasil tem defendido, em fóruns multilaterais e por meio da diplomacia presidencial, a necessidade de adaptar as instituições econômicas e políticas da governança internacional à emergência de novos atores e desafios globais.
A falta de representatividade e eficácia do sistema decisório das Nações Unidas paralisa há tempos aquele que seria o locus natural de democratização do poder mundial.
Para decepção de muitos, e na tentativa de retardar o declínio do arranjo institucional do pós-guerra, membros do G7 reanimam a aliança que lhes garante certa proeminência estratégica, a elevados custos financeiros e de segurança, principalmente para a Europa.
O Sul Global, a partir dos cinco Brics originais, busca transformar o notável dinamismo econômico da última década em plataforma para construção de um sistema multipolar inclusivo. Com o ingresso de Etiópia, Egito, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes, o bloco aumenta seu peso relativo, embora com déficit de integrantes da América Latina. Colômbia e México aparecem como candidatos a serem apoiados em eventual rodada de expansão do Brics+.
Fiel a sua tradição em política externa, o Brasil aposta na articulação de uma força de equilíbrio, de forma a atenuar conflitos decorrentes da tendência à formação de uma nova bipolaridade no sistema, liderada por China e Estados Unidos. No entendimento do Brasil, a divisão do mundo em grupos políticos ou econômicos isolados deve ser evitada.
Esta leitura considera que potências médias podem influenciar interações e eventualmente amortecer crises entre os polos mais “duros” do G7 e do Sul Global, a depender das posições que adotem em certos temas. Nesse sentido, África do Sul, Arábia Saudita, Índia, Indonésia e Turquia, além do Brasil, poderiam desempenhar, no campo internacional, papel equivalente ao dos swing states nas eleições dos Estados Unidos, conforme expressão do articulista norte-americano Cliff Kupchan.
O universalismo da posição brasileira reflete-se em relações estreitas com os Estados Unidos de Joe Biden nas agendas de emprego decente e combate ao racismo, além de Espanha e França, como democracias liberais que tentam resistir à ascensão da extrema-direita e promovem algumas pautas progressistas, como a equidade de gênero.
Países africanos, em particular os de língua portuguesa, são prioritários, diante da conveniência de preservar o Atlântico Sul desmilitarizado, como zona de paz e cooperação. Em tempos de crescimento da circulação mundial de material bélico, a geração de valor, renda, inovação e capacidades na África constitui incentivo essencial ao reforço da estabilidade neste gigantesco e complexo vizinho.
Sobre tal pano de fundo, o Brasil organiza sua atuação na presidência do G20, fórum de coordenação concebido para prevenir que impasses comerciais, econômicos e políticos venham a constituir ameaças à paz e à segurança. Ainda que não vinculantes, suas decisões refletem consensos e sinalizam rumos, uma vez que engajam as 19 maiores economias, sendo algumas do Brics+, além de representações coletivas da União Europeia e, mais recentemente, da União Africana.
O Brasil identificou três áreas interconectadas para atuação primordial: combate à fome e à pobreza, transição energética justa e governança dos organismos econômicos multilaterais. A fim de disponibilizar recursos para implementação dos dois primeiros objetivos, é preciso que FMI e Banco Mundial, além dos bancos de desenvolvimento regionais, como BID, BAD, e o Novo Banco de Desenvolvimento (do Brics+) sejam habilitados a utilizar mecanismos financeiros flexíveis, em benefício dos países mais pobres.
A ampliação dos investimentos sociais, da infraestrutura e de medidas de combate à mudança do clima tem sido o foco principal das duas trilhas do G20, coordenadas pelos ministros da Economia e das Relações Exteriores e seus sherpas. A criação da Força-Tarefa do Clima atende à necessidade de aumentar rapidamente o volume de financiamento climático de bilhões para trilhões de dólares. Impostos internacionais sobre bilionários e grandes corporações, depositados em um fundo coletivo para o clima e a fome, bem como a conversão da dívida externa em investimentos produtivos sustentáveis, são propostas criativas para tentar reduzir, no médio e longo prazo, a eclosão de desastres “naturais” e conflitos humanos por recursos.
A meta da Força-Tarefa do Clima, tão abrangente quanto os efeitos causados pelo aquecimento do planeta, é a gradual migração de estoques e fluxos de capital em duas direções. Do ponto de vista geográfico, dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento e, no aspecto setorial, dos combustíveis fósseis à economia de baixo carbono e resiliente ao clima. Como resultado do diálogo e do entendimento, a partir da ciência disponível, o Fundo do Clima poderá constituir resposta à altura da relevância do G20 para a urgência climática.
Em tempos de escassez de lideranças, a legitimidade democrática emana da capacidade de gerar avanços sociais no plano interno e estabilidade política no plano externo. Por seus múltiplos pertencimentos, como produto singular da cultura afro-latino-americana, de uma história regional pacífica, com elevado capital ambiental e potencial produtivo, o Brasil se qualifica como articulador de equilíbrio na atual ordem de uma paz em suspenso.
Cláudia de Borba Maciel é diplomata e embaixadora do Brasil na Guiné Bissau. Mestre em relações internacionais pela UNB, atuou nas embaixadas do Brasil em Buenos Aires, Caracas, Quito e Paris, no Consulado em Munique e na Missão junto à ONU, em Genebra.
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