O Brasil e as eleições na Venezuela
As eleições do último domingo, 28 de julho, passaram a representar o maior teste para a política externa do governo Lula, no sentido de que vai demonstrar qual é a prioridade: a defesa dos interesses do país, da democracia e dos direitos humanos ou a prevalência da ideologia e dos interesses partidários
Apesar do princípio constitucional de não interferência em assuntos internos de outros países, os sucessivos governos do PT fizeram exatamente o contrário, como se observa agora na Venezuela. Apoiou Hugo Chávez e Nicolás Maduro nas eleições e respaldou politicamente e minimizou as restrições à democracia dos dois governos, apesar das evidências de medidas autoritárias e de o Mercosul ter suspendido a Venezuela por desrespeito à cláusula democrática. Autoridades brasileiras ressaltaram o papel de Lula para a realização das eleições, para a transparência do processo eleitoral e para a negociação do acordo de Bermudas.
Desde o acordo de Barbados, em outubro de 2023, em que a Venezuela se comprometeu a realizar eleições presidenciais livres e transparentes, em troca da suspensão das sanções sobre a venda de petróleo e gás, com o Brasil como um dos avalistas, o governo Lula aumentou seu apoio a Maduro.
Exemplo claro foi o tratamento dado a Maduro e as declarações de Lula antes do encontro de presidentes sul-americanos em Brasília. Logo em seguida, Maduro antecipou as eleições previstas para dezembro e tomou uma série de medidas para dificultar a candidatura oposicionista (inabilitação de políticos, perseguições e medidas repressivas, limitação de eleitores no exterior, cancelamento de convites para observadores independentes).
Os EUA revogaram a suspensão das sanções com a crescente falta de transparência na campanha eleitoral. O Brasil continuou a apoiar o governo da Venezuela com um silêncio ensurdecedor, com contatos diretos, apresentando-se como possível mediador na disputa interna e com declarações vagas estimulando a transparência nas eleições.
Apesar de todas as restrições políticas internas, a oposição se mantinha otimista quanto aos resultados no dia 28 de julho. Poucas horas depois de encerrada a votação, o presidente do Conselho Nacional Eleitoral, anunciou o resultado da votação, com apenas 80% dos votos apurados, com a vitória de Maduro para um terceiro mandato de seis anos.
Apesar dos protestos da oposição, que informou ter dados que contrariavam o anúncio, menos de 24 horas depois da eleição, o CNE diplomou Maduro como presidente da República Bolivariana da Venezuela. O ministro da Defesa fez pronunciamento público respaldando a eleição de Maduro. Como era previsível, manifestações de rua contra a diplomação se multiplicaram, com crescente repressão policial-militar que causaram dezenas de mortos e centenas de prisões.
Desde domingo, a comunidade internacional manifestou dúvidas quanto à lisura do pleito, como foi feito por nove países latino-americanos (inclusive os governos de esquerda do Chile e da Colômbia), liderados pelo Uruguai. Os representantes diplomáticos de sete desses países foram expulsos com prazo de 72 horas para deixar o país, e a embaixada da Argentina foi ameaçada de invasão para retirar venezuelanos exilados em seu interior. Buenos Aires pediu ao governo brasileiro para representar os interesses argentinos.
Nesse contexto, as ações e declarações do governo brasileiros se complicaram rapidamente. O envio do assessor internacional de Lula a Caracas foi um erro por colocar o Brasil no centro dos acontecimentos e dar a impressão que poderia exercer o papel de mediador entre o autoritarismo de Maduro e uma oposição fortalecida (o que, na realidade, não existe).
A posição do governo brasileira foi de cautela, sem declarações públicas sobre o resultado da votação antes da divulgação das atas com o resultado das urnas. Lula e Amorim declararam que o governo brasileiro só deve reconhecer o resultado após garantia de eleições justas, que não iria endossar a narrativa de fraude sem ver as atas, que é normal haver briga e que não há nada de grave.
A declaração de Lula de que o reconhecimento do resultado depende da publicação das atas e que, se houver contestação, a oposição deve recorrer à Justiça eleitoral, que deverá decidir sobre a pendência, e então, o governo brasileiro vai se pronunciar.
Na prática, Lula antecipou o pedido de Maduro – que publicamente solicitou a mesma coisa ao CNE – e reconheceu implicitamente a reeleição de Maduro, visto que já se sabe qual a decisão do CNE (sempre a favor do governo). Essa atitude de Lula criou uma armadilha contra o próprio governo. E se as atas não forem apresentadas…
O quadro se complicou ainda mais pelos pronunciamentos do Carter Center (que disse que o processo eleitoral no país não pode ser considerado democrático), da União Europeia, do G7, dos países latino-americanos, da OEA apesar de não ter conseguido aprovar resolução condenando a Venezuela, em função da abstenção do Brasil. Brasil, Colômbia e México pediram divulgação das atas e exame institucional.
Os EUA reconheceram a vitória da oposição. Sem falar da repressão às manifestações pela polícia e pelo Exército, das investigações sobre o ataque de hackers da Macedônia do Norte ao Conselho Eleitoral, que queimaram e destruíram documentos, dos ataques à oposição como responsável pelos “atos de terrorismo” e de tentativa de golpe de Estado, da ameaça de processo e prisão de Maria Corina Machado, todas, contrárias às declarações de Lula de que tinha confiança na normalidade no processo eleitoral e não há nada de grave na eleição venezuelana.
Algumas das consequências da atitude do governo brasileiro, ao demorar em se pronunciar sobre o resultado da votação, são a perda explícita da liderança política na América do Sul, o desgaste da imagem internacional do presidente Lula e a perda da credibilidade da política externa.
Caso reconheça a vitória de Maduro (o que me parece improvável por razões de política interna, mas possível pelas declarações até aqui) ou adie indefinidamente o reconhecimento, o governo Lula enfrentará forte crítica, dificultando ainda mais a governança interna.
As eleições do último domingo, 28 de julho, passaram a representar o maior teste para a política externa do governo Lula, no sentido de que vai demonstrar qual é a prioridade: a defesa dos interesses do país, da democracia e dos direitos humanos ou a prevalência da ideologia e dos interesses partidários.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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