Lula, a guerra e o Brasil que quer ser líder sem ter que liderar
Governo retomou a histórica ambição de colocar o Brasil no centro das grandes decisões geopolíticas, mas a imparcialidade tradicional do país em disputas internacionais como a invasão da Ucrânia pode atrapalhar seus planos. Para observadores externos, potências precisam estar prontas para tomar partido, e o Brasil parece querer ser líder sem assumir responsabilidade por grandes decisões
Governo retomou a histórica ambição de colocar o Brasil no centro das grandes decisões geopolíticas, mas a imparcialidade tradicional do país em disputas internacionais como a invasão da Ucrânia pode atrapalhar seus planos. Para observadores externos, potências precisam estar prontas para tomar partido, e o Brasil parece querer ser líder sem assumir responsabilidade por grandes decisões
Por Daniel Buarque*
Depois de evitar tomar partido e fazer afirmações culpando tanto a Rússia quanto a Ucrânia pela guerra na Europa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva finalmente afirmou pela primeira vez que o governo russo tinha responsabilidade pelo conflito. Ainda assim, o brasileiro evitou assumir de forma clara uma posição na polarização global ampliada pelo confronto, vetou o envio de munições de tanques à Ucrânia e alegou não concordar com a guerra.
A declarada neutralidade, ou imparcialidade, em um conflito de grande importância global, de certa forma, se encaixa em uma tradição da diplomacia brasileira de tentar evitar confrontos e disputas com outros países. A neutralidade é um valor da política externa brasileira e faz parte do respeito à soberania e à autonomia de outras nações.
A falta de um posicionamento claro do país, entretanto, contrasta fortemente com outra postura da diplomacia brasileira: a busca por prestígio.
Desde que voltou ao poder, Lula recolocou em pauta propostas para posicionar o Brasil no centro das grandes decisões globais. Em declaração antes mesmo de completar um mês na Presidência, ele criticou a arquitetura de governança internacional e tratou da proposta de criar um grupo de países formado por Brasil, Alemanha, Japão e Índia para reivindicar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Ele também defendeu a criação de um grupo de países que se envolva em uma mediação para pôr fim à guerra na Ucrânia.
Esta ambição do Brasil por uma posição de destaque e a busca do país por prestígio internacional é histórica e faz parte da tradição da diplomacia brasileira. Desde os tempos do Barão do Rio Branco o Brasil se coloca sempre como um candidato a potência global, buscando maior status no mundo.
O problema é que essas duas posturas, a ambição global e a vontade de manter o país neutro em momentos de grandes disputas globais não se encaixam, e acabam criando uma crise na identidade internacional do Brasil. Para o professor canadense Sean Burges, por exemplo, o Brasil é um país que quer ser líder mundial sem ter que liderar nada. “Os formuladores da política externa brasileira querem posicionar seu país como um líder, mas são quase patologicamente avessos a afirmar explicitamente esse papel ou aceitar as responsabilidades implícitas”, diz no livro Brazil in the World.
Vista de fora, a neutralidade brasileira costuma frustrar observadores estrangeiros que acompanham o país. Para diplomatas britânicos, o país aparenta nunca querer se comprometer de verdade com nenhum lado em disputas políticas globais. Para muitos deles, o país aparenta estar sempre “em cima do muro”. Avaliação parecida foi feita pelo ex-presidente dos EUA Barack Obama, que diz em suas memórias que o Brasil reluta em tomar partido na política internacional.
Para membros da comunidade de política externa das grandes potências entrevistados em minha pesquisa de doutorado, esse contraste revela “uma contradição entre o que [os brasileiros] dizem que querem e o que eles fazem na prática”. O Brasil é um país que parece querer ser “amigo de todos” e, assim, evita tomar partido em disputas internacionais. Ele permanece “em cima do muro” em questões importantes, o que, por sua vez, pode prejudicar a legitimidade de sua tentativa de ter uma voz mais forte na política global.
A questão central é que, para essas elites estrangeiras, países que têm alto status e fazem parte de grupos importantes como o Conselho de Segurança da ONU precisam estar preparados para tomar decisões que influenciam o mundo inteiro. Apesar de o Brasil pedir um lugar lá, ele não parece querer decidir sobre os rumos da política mundial e se abstém em momentos importantes, como na atual guerra na Ucrânia.
“Se vocês querem ser uma potência global, uma das maiores economias do mundo e querem ter influência política equivalente, vocês precisam estar preparados para tomar partido”, disse um dos entrevistados. Segundo os diplomatas ouvidos, o Brasil de fato tem muito potencial, além de força política e econômica, “mas está sempre muito assustado, com medo de incomodar as pessoas e escolher lados. O país deveria ser um ator global mais importante do que é, mas por conta da relutância em se envolver, acaba ficando fraco”, segundo uma das fontes da pesquisa.
A situação pode ser vista ainda como mais complicada quando considerado o aumento da polarização global e a amplificação de outros riscos à paz mundial. Um dos pontos que podem colocar em xeque a posição do Brasil é a crescente rivalidade entre os EUA, aliados históricos do país, e a China, principal parceiro comercial do Brasil atualmente.
Segundo um general americano, em um documento vazado neste início de ano, os Estados Unidos e a China podem entrar em guerra já em 2025, provavelmente devido a uma tentativa de Pequim invadir Taiwan.
Um confronto de escala global como este possivelmente colocaria o Brasil em uma posição difícil, sem poder manter a sua histórica neutralidade e sendo forçado a escolher com quem se alinhar e a quem alienar. Algo semelhante ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando a ditadura de Vargas acabou ignorando a simpatia que podia ter por políticas autoritárias do Eixo e se juntou aos Aliados, em uma manobra que ajudou a conseguir algum prestígio para o país após o fim da guerra – quando o Brasil esteve mais perto de ter chances de ser um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e ganhou o “prêmio de consolação” de ser o primeiro país a discursar durante as Assembleias Gerais das Nações Unidas.
Independentemente de grandes conflitos globais, entretanto, a percepção externa é que o Brasil precisa ser claro e assertivo sobre o que quer e com quem quer se alinhar. Ser amigo de todos, como o Brasil parece querer, pode ser uma boa estratégia para desenvolver uma agenda multilateral e consolidar o país como uma potência média – não é de todo um problema – , mas pode ser percebido como um empecilho se o Brasil de fato quiser ter o status de grande potência.
*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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