A recriação da Unasul é viável?
Depois de nascer funcional e de ter relevância, a união sul-americana se tornou uma organização zumbi, que agora tenta ser retomada por ação do governo brasileiro. Para professores de relações internacionais, qualquer plano de reativação da Unasul que busque sua longevidade passa pelo cuidado na construção de seu corpo burocrático, que precisa ser qualificado e em número adequado para realizar os diversos objetivos da instituição
Depois de nascer funcional e de ter relevância, a união sul-americana se tornou uma organização zumbi, que agora tenta ser retomada por ação do governo brasileiro. Para professores de relações internacionais, qualquer plano de reativação da Unasul que busque sua longevidade passa pelo cuidado na construção de seu corpo burocrático, que precisa ser qualificado e em número adequado para realizar os diversos objetivos da instituição
Por Miguel Mikelli Ribeiro e Mariana Lyra*
Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva trouxe a ideia de reativar a Unasul (União das Nações Sul-Americanas). A organização foi criada nos anos 2000 para substituir a então Comunidade de Nações Sul-Americana (Casa). A Unasul surgiu de uma proposta da Venezuela e foi instituída por meio do Tratado de Brasília de 2008.
Com sede em Quito, na bela região de Mitad del Mundo, a Unasul conseguiu congregar todos os 12 Estados da América do Sul. Apesar de alguns setores a identificarem pela integração econômica, o foco da organização não era comercial, mas sim formar uma organização que possibilitasse atuar em uma variedade de temas, desde infraestrutura e defesa à saúde e cultura.
O próprio artigo 2º do Tratado Constitutivo da Unasul demonstra sua amplitude, à medida que tem por objetivo “construir, de maneira participativa e consensuada, um espaço de integração e união no âmbito cultural, social, econômico e político entre seus povos, priorizando o diálogo político, as políticas sociais, a educação, a energia, a infraestrutura, o financiamento e o meio ambiente, entre outros”. O elemento central da organização era a concertação política.
Um dos destaques da Unasul foi seu papel de construção de confiança mútua entre os países da região. No âmbito da organização, foi criado o órgão inédito de cooperação em matéria de defesa, o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). O órgão representou um avanço importante para as questões de defesa da região, uma vez que foi desenvolvido para consolidar uma zona de paz, fundamentando-se no consenso e diálogo entre os Estados-membros, além de focar na cooperação e desenvolvimento de uma indústria de defesa, como já demonstrado pela coautora deste texto em outro trabalho.
A Unasul nasceu com prestígio. Nestor Kirchner, ex-presidente argentino, foi o seu primeiro Secretário-Geral, ficando no cargo até 2010. Sua importância pode ser atestada pela atuação da Unasul nas crises políticas regionais, tais como: a crise separatista da região boliviana do Pando, em 2008; a crise do Equador, em 2010; a crise fronteiriça entre Colômbia e Venezuela; e a crise política do Paraguai, em 2012, que resultou na suspensão do país. Portanto, não há dúvidas de que, enquanto foi funcional, a organização desempenhou um papel relevante no contexto político sul-americano. Sua reativação poderia trazer novamente bens públicos coletivos derivados da concertação política.
A Unasul realizou reuniões de cúpula entre 2008 e 2014. Disputas políticas acirraram os ânimos, que se intensificaram a partir de 2017, levando a sua paralisia. O imbróglio central foi a escolha do secretário-geral. Caracas tentou barrar a indicação do argentino José Octavio Bordon para o cargo. Devido aos impasses com a Venezuela, em 2018, Brasil, Argentina, Paraguai, Chile, Colômbia e Peru decidiram suspender sua participação de forma conjunta. No mesmo ano, a Colômbia denunciou o Tratado de Brasília. Em 2019, foi a vez de Brasil, Argentina, Chile, Equador e Peru o denunciarem. O Uruguai seguiu o mesmo caminho, em 2020. Com as denúncias em massa, e a busca por fóruns alternativos, a Unasul tornou-se algo que a literatura de relações internacionais chama de organização zumbi: existe formalmente, mas sem qualquer operação.
Em artigo publicado na Revista de Ciência Política do Chile, intitulado What Leads International Organizations in Latin America to be Active or Paralyzed? A Qualitative Comparative Analysis, nós buscamos investigar o que faz com que organizações da América Latina permaneçam ativas e o que as levam à paralisia. Utilizando o método comparativo Qualitative Comparative Analysis (comumente referido como QCA), avaliamos quais as condições necessárias e as configurações suficientes tanto para a paralisia, como para a atividade dessas organizações.
Nossa análise reforçou a ideia de que Estados contestadores são um dos fatores que explicam a paralisia de organizações internacionais latino-americanas. Porém, o que vimos foi que isto, por si só, não é suficiente para o resultado. Identificamos que movimentos de contestação de uma organização na região só tem poder explicativo quando combinada a outros elementos: fragilidade[1] dos Estados-membros, número reduzido de funcionários de organização e baixa autonomia institucional. Em nossa análise, esses resultados explicam inclusive a paralisia da própria Unasul (bem como da Alba, Celac e do Banco do Sul).
Um novo acordo de reativação da Unasul, pactuado pelos países sul-americanos, eliminaria o elemento contestador. Porém, isso não é garantia de funcionalidade no longo prazo. Para isso, é necessário também considerar outros fatores para a manutenção das atividades de uma organização da região.
No nosso artigo, identificamos duas alternativas de condições consideradas necessárias, porém não suficientes para a manutenção das atividades. Ou a organização deve ter um escopo limitado temático de atuação, ou tem um número amplo de funcionários, para dar conta das suas atividades. Como a Unasul está fora do escopo limitado, então é necessário que a sua recriação venha seja acompanhada de uma burocracia ampla.
No mesmo trabalho, porém, além também apresentamos os caminhos que são suficientes para manter uma organização regional em funcionamento:
- garantir um corpo burocrático adequado, em número e qualidade, combinado com a escolha de uma cidade sede que atraia bons profissionais para a organização. O centro dessa explicação é que o corpo burocrático é fundamental para o bom funcionamento da instituição;
- estabelecer a organização com escopo de atuação bem delimitado e estar sediada em uma cidade atrativa e dinâmica. Nesse caso, a organização poderia ter um número reduzido de funcionário, desde que ela cuidasse de poucos assuntos. Essa é uma característica das organizações técnicas, como a União Postal Universal;
- por fim, o nosso último caminho suficiente, assim como no primeiro caso, necessitaria ter um número amplo de funcionários, e se não tivesse em uma sede atraente, ela deveria compensar essa não atratividade com um número amplo de membros, e uma organização de escopo ampliado.
Um termo em inglês é frequentemente utilizado na academia quando se pretende retirar a complexidade de elementos técnicos e chegar ao ponto central: it boils down to. Nesse sentido, o resultado no nosso artigo boils down to a importância, por vezes negligenciada, de se ter uma burocracia que dê conta do trabalho de uma organização regional. Nossos achados mostram que, primeiro, a reativação da Unasul precisa garantir um número adequado de funcionários para que ela funcione, e só isso talvez não fosse suficiente.
O ideal é que, além de ter um número alto de funcionários, ela fosse criada em uma sede atrativa para os futuros profissionais.
O Brasil, por exemplo, tem ótimas cidades, dinâmicas e com qualidade de vida, que poderiam sediá-la – o mesmo ocorre com outros países da região, como o Uruguai, que sedia o Mercosul (Montevidéu), e o Chile, que abriga a sede regional da ONU (Santiago). Dessa forma, qualquer plano de reativação da Unasul que busque sua longevidade passa pelo cuidado na construção de seu corpo burocrático, que precisa ser qualificado e em número adequado para realizar os diversos objetivos da instituição.
*Miguel Mikelli Ribeiro é colunista da Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Mariana Lyra é professora de relações internacionais do Instituto de Humanidades e Letras da Unilab.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Referências:
[1] O artigo investigou o statehood dos Estados latino-americanos. De acordo com Grävingholt, Ziaja and Kreibaum (2012, p. 6), statehood é um fenômeno com três dimensões interrelacionadas: autoridade, capacidade e legitimidade estatal. Em certo sentido, é o oposto de fragilidade do Estado.
Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro "Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares".
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