11 junho 2024

30 anos do Genocídio de Ruanda: O que sabemos sobre o país para além da guerra civil?

Abertura a negócios internacionais, economia verde e participação política de mulheres marcam o país contemporâneo. Ruanda tem presença internacional multinível em busca de desenvolvimento a partir do pan-africanismo pragmático, pregando união do continente, mas sem descartar cooperações com o Norte Global

O museu do genocídio em Ruanda, em Kigali (Foto: Divulgação)

Em 7 de abril deste ano completaram-se 30 anos do genocídio contra os tutsis em Ruanda, evento que marcou a história do país e sua imagem no cenário internacional. Apesar de ser importante falar sobre o passado para que ele não se repita, hoje não estou aqui para falar sobre isso, mas sobre as consequências deste acontecimento. 

O que sabemos sobre Ruanda contemporaneamente? Foi a pergunta que me fiz quando comecei a estudar a história do país, em 2012, no final da minha graduação em relações internacionais. Muito se falava sobre a guerra civil e o genocídio de 1994, mas pouco se escrevia em português sobre como Ruanda estaria nos dias atuais. Isso me motivou a ir ao país e ver com meus próprios olhos como estava a sociedade depois de vizinhos matarem uns aos outros.

Já no mestrado, em 2015, tive a oportunidade de fazer pesquisa de campo e socializar com ruandeses. A experiência de estar em um país que você estuda é indescritível, especialmente se sua história for marcada por crimes contra a humanidade. Estar em Ruanda me possibilitou desmistificar algumas pré-concepções sobre o Estado e o continente africano.

‘O que me chamou a atenção foi a proximidade cultural entre Brasil e Ruanda. Foi muito forte o sentimento de me sentir em casa por estar rodeada de pessoas negras e ter uma forma de socialização como em Salvador’

O que me chamou a atenção foi a proximidade cultural entre Brasil e Ruanda. Foi muito forte o sentimento de me sentir em casa por estar rodeada de pessoas negras e ter uma forma de socialização como na minha cidade natal, Salvador (Bahia). Não esperava encontrar familiaridade em um pequeno país de 26.338 km², no coração da África – na região dos Grandes Lagos –, com uma população acima de 13 milhões de habitantes, em 2022.

Com a estadia de um mês consegui ver na prática as iniciativas verdes para o país. Exemplo disso foi quando cheguei no aeroporto de Kigali (capital), onde tive que tirar a proteção de plástico da mala porque era proibido o uso no país. Especialmente na capital, não consegui ver sacolas plásticas em nenhum local, sendo substituídas por sacolas de tecido Cami. Apesar de ter muitas construções ao longo da cidade, Kigali conservava muito bem o verde nas áreas urbanizadas.

‘Por mais que ainda seja um país de renda baixa, Ruanda tem atraído investimentos externos, ocupando a 38ª posição no ranking que observa a facilidade de fazer negócios’

Coincidindo com o aumento das construções e do processo de urbanização na época da visita, ficava evidente como o país buscava o desenvolvimento nacional, seja por expressões políticas como na sua conformação geoespacial. Por mais que ainda seja um país de renda baixa, Ruanda tem atraído investimentos externos, ocupando a 38ª posição no Doing Business em 2020, um ranking que observa a facilidade de fazer negócios.

Um aspecto que talvez algumas pessoas associem à Ruanda contemporânea é a participação feminina na política. 

Em 2016, Ruanda assumiu o primeiro lugar, com 64% dos assentos do parlamento ocupados por mulheres; contemporaneamente, as mulheres obtêm 61,3% dos assentos no parlamento e 55% das posições ministerial

‘As mulheres em Ruanda quebraram os estereótipos de gênero e assumiram trabalhos que costumavam ser considerados apenas para homens’

Como Victoire Ingabire Umuhoza ressalta, “as mulheres em Ruanda quebraram os estereótipos de gênero e assumiram trabalhos que costumavam ser considerados apenas para homens, como carpintaria, condução de caminhões, pedreiro e assim por diante. E pela primeira vez na história do país, temos mulheres pilotos, árbitras internacionais de futebol, cirurgiões e CEOs”. Apesar dessa expressividade na política, é importante observar como são constituídas as relações sociais em espaços privados, predominando ainda uma relação de subserviência que de emancipação das mulheres ruandesas.

Kigali Genocide Memorial, 2015

As iniciativas internas impulsionam também a participação ruandesa no cenário internacional, seja regionalmente, por meio da Comunidade do Leste Africano (EAC); continentalmente, com a União Africana (UA); e internacionalmente, com as Nações Unidas, a Organização Internacional da Francofonia (OIF), e o Commonwealth. 

Essa atuação multinível caracteriza a busca pelo desenvolvimento nacional, atuando a partir do que chamei de pan-africanismo pragmático, ou seja, instrumentalizando o discurso pan-africanista de união entre os países africanos, mas sem descartar cooperações com países do Norte Global que impulsionem, de forma mais rápida, o desenvolvimento do país.

‘Por outro lado, Ruanda tem atuado na República Democrática do Congo (RDC) há anos em busca por recursos naturais, agravando os conflitos no país’

Recentemente, a atuação de Ruanda gerou críticas e preocupação da comunidade internacional. Por um lado, existe sua parceria com o Reino Unido para receber imigrantes, o que gerou questionamentos sobre as condições de vida em solo ruandês destes requerentes de asilo. Por outro lado, Ruanda tem atuado na República Democrática do Congo (RDC) há anos em busca por recursos naturais, agravando os conflitos no país por conta do seu apoio ao Movimento 23 de Março (M23), alegado pelas Nações Unidades, Estados Unidos e Kinshasa.

A partir desses aspectos, é possível perceber que a história e atuação de Ruanda tem sido marcada pelos desdobramentos da guerra civil de 1994, mas também pelas ambições de Paul Kagame, que está no poder como presidente desde 2000. É importante observar e acompanhar até onde vai a coerência entre o discurso pan-africanista de Ruanda e a exploração do seu vizinho, a RDC. 

Além da necessidade de se estudar Ruanda contemporaneamente, precisamos olhar também para a situação na República Democrática do Congo.

Camila Andrade é colunista da Interesse Nacional, pesquisadora do Pan-African Thought and Conversation (IPATC), na Universidade de Joanesburgo, e do pós-doutorado na UFPB. Doutora em ciência política pela UFRGS e pesquisadora do Grupo Áfricas: sociedade, política e cultura. É também mestre em relações internacionais pela UFSC. Suas principais linhas de pesquisa são estudos africanos e do Sul Global, Ruanda e feminismos negros. É criadora do @camilaafrika, uma comunidade de democratização dos Estudos Africanos.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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