A atuação dos EUA na América Latina – Fabricando o terrorista latino para garantir a hegemonia
Para evitar que esse processo de securitização do combate às drogas desumanize populações inteiras e desestabilize ainda mais o continente, é preciso que as lideranças latino-americanas reafirmem a importância da soberania nacional e restabeleçam os mecanismos de solução pacífica regional, resgatando junto à gestão de Donald Trump a possibilidade de resgatar uma política de “bom vizinho”, ou pelo menos a de um vizinho menos imperial.

Nem é necessário prestar muita atenção pra perceber que o mundo atravessa hoje mudanças históricas. Se, até recentemente, entendíamos estar em um ordenamento global centrado na hegemonia dos EUA, a ascensão econômica e geopolítica chinesa redefine, a cada dia, o peso e a capacidade relativa de cada ator no cenário internacional.
Mas, ainda que a rivalidade crescente entre o dragão chinês e a águia norte-americana impacta países ao redor do mundo, a América Latina parece ser uma das regiões particularmente afetada, em especial pela crescente interferência da Casa Branca em assuntos internos regionais.
‘Desde que Donald Trump assumiu a Presidência, observamos uma política externa intervencionista’
Desde que Donald Trump assumiu a Presidência, observamos uma política externa intervencionista, que composta por vários elementos, tais como: aumentos tarifários, pressões diplomática e retomada do controle de possessões históricas como o Canal do Panamá, parece aprovar o manu militari dentro do hemisfério americano.
Os crescentes ataques às embarcações de cartéis venezuelanos em águas internacionais e o envio de um navio de guerra a ilha vizinha de Trinidad e Tobago indicam que, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, os EUA devem ir além de operações clássicas da CIA para impor sua vontade regional. No caso da Venezuela, o risco de ação militar terrestre intensifica-se gradativamente.
Entretanto, ainda hoje Trump não dispõe de um apoio claro da população norte-americana, nem mesmo entre sua base cativa do MAGA, para deslocar tropas oficiais dos EUA ao vizinho da América Sul. A pesquisa nacional do YouGov, realizada em setembro de 2025, indica que somente 16% dos norte-americanos apóiam uma intervenção direta dos EUA no território Venezuelano, enquanto 35% estão de acordo com o envio dos navios militares para a região.
‘Com o objetivo de ampliar o apoio nacional da sua própria base, a administração Trump tem se valido de uma reativação da narrativa binária, utilizada no governo George W. Bush no início do século XXI’
Com o objetivo de ampliar o apoio nacional da sua própria base, a administração Trump tem se valido de uma reativação da narrativa binária, utilizada no governo George W. Bush no início do século XXI. Lembremos que, após o ataque de 11 de setembro de 2001, Bush articulou de maneira muito eficiente a imagem do terrorismo internacional como uma ameaça permanente e irreconciliável, contra a qual não existiria alternativa a não ser uma ação militar extrema, aberta e inegociável.
Mas se a chamada Guerra ao Terror não impactou a América Latina diretamente, com Trump, a narrativa da Guerra às Drogas encontra no nosso continente seu cerne, foco e inspiração.
Desde fevereiro de 2025, o Departamento de Estado tem incluído diversos cartéis de narcotráfico na lista de Organizações Estrangeiras Terroristas. Essa alteração no significado dos cartéis de narcotráfico é importante para consolidar o apoio político interno. Judith Butler, em seu livro Frames of War, destaca como o primeiro passo para uma guerra não é uma bala ou um bomba, mas sim o enquadramento midiático criado em torno de quanto uma vida vale.
Ao inserir os cartéis latino-americanos na lista de Organizações Terroristas, a política externa estadunidense busca redefini-los como sendo aqueles formados por indivíduos situados fora do quadro de valorização da vida, passíveis, portanto, a eliminação sumária, sem adotar os procedimentos formais do Estado de direito – tal como foi visto a imagem do terrorista islâmico no início dos anos 2000.
‘Essa desumanização simbólica buscar fornecer “legitimidade” aos ataques que o governo Trump vem realizando no Caribe, assim como seu antecessor o fez em países de maioria islâmica há duas décadas’
Essa desumanização simbólica buscar fornecer “legitimidade” aos ataques que o governo Trump vem realizando no Caribe, assim como seu antecessor o fez em países de maioria islâmica há duas décadas. Esse paralelo histórico pode inclusive ser encontrado na fala do próprio Secretário da Guerra, Pete Hegseth, ao afirmar que “assim como a Al-Qaeda travou guerra contra nossa pátria, esses cartéis estão travando guerra contra nossa fronteira e nosso povo, por isso, não haverá refúgio nem perdão – apenas justiça.”
A lógica maniqueísta que busca justificar a eliminação do oponente fora das regras formais do direito internacional é extremamente perigosa para estabilidade política da região, inclusive, para o Brasil.
Sabemos quais foram as conseqüências que a erosão das normativas multilaterais, o colapso das instâncias diplomáticas regionais e a designação de todos mulçumanos como potenciais terroristas representou ao Oriente Médio no início desse século, e ao que tudo indica Trump adota a mesma lógica de política externa para a América Latina.
‘Se o simbolismo do terror em torno dos narcotraficantes latinos se consolidar, é possível que Trump consiga angariar o apoio necessário para invadir o território venezuelano’
Se o simbolismo do terror em torno dos narcotraficantes latinos se consolidar da mesma maneira que vimos em relação ao islamismo, é possível que Trump consiga angariar o apoio necessário para invadir o território venezuelano, com impactos nefastos para todo hemisfério, inclusive, dentro dos EUA. Pois, a Guerra às Drogas pela via da criação do “terrorismo latino” significa também um aumento da estigmatização e perseguição dos imigrantes latinos que residem nos Estados Unidos.
Para evitar que esse processo de securitização do combate às drogas desumanize populações inteiras e desestabilize ainda mais o continente, é preciso que as lideranças latino-americanas reafirmem a importância da soberania nacional e restabeleçam os mecanismos de solução pacífica regional, resgatando junto à gestão de Donald Trump a possibilidade de resgatar uma política de “bom vizinho”, ou pelo menos a de um vizinho menos imperial.
Natalia Fingermann, professora do Bacharelado em Relações Internacionais da ESPM. Doutora em Administração Pública e Governo na FGV SP e Mestre em Social Development na University of Sussex
Rafael R. Ioris é professor de história latino-americana no Departamento de História da Universidade de Denver. É pesquisador do Instituto de Estudos dos Estados Unidos no Brasil e autor de vários artigos e capítulos de livros sobre a história do desenvolvimento no Brasil e em outras partes da América Latina e sobre o curso das relações EUA-América Latina, particularmente durante a Guerra Fria. Autor de livros como Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista, Transforming Brazil: A history of national development in the postwar era. É non-resident fellow do Washington Brazil Office, em DC.
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