A ausência de Putin na reunião do Brics: o efeito subestimado do TPI
Expansão do grupo ofuscou a decisão do líder russo de não ir à cúpula para evitar ser preso. Para professor, ausência atesta o efeito de constrangimento que o tribunal gera para situações que envolvam Estados democráticos e indica que ele não deve vir ao Brasil enquanto a condenação estiver valendo
Expansão do grupo ofuscou a decisão do líder russo de não ir à cúpula para evitar ser preso. Para professor, ausência atesta o efeito de constrangimento que o tribunal gera para situações que envolvam Estados democráticos e indica que ele não deve vir ao Brasil enquanto a condenação estiver valendo
Por Miguel Mikelli Ribeiro*
A política externa brasileira foi marcada, em agosto, pela paradigmática reunião do Brics na África do Sul. Nela houve a maior expansão do agrupamento realizada até então. Esse resultado dominou o noticiário e ofuscou outra questão importante salientada na reunião: a ausência de Putin. Com a decisão do Tribunal Penal Internacional (TPI), que determinou de prisão contra o líder russo, Putin optou por não viajar. Esse fato traz algumas reflexões relevantes sobre os efeitos das decisões do referido tribunal.
O TPI é uma corte internacional com características ímpares. É o único órgão adjudicatório permanente que pode julgar indivíduos com possibilidade de prisão. Fundado pelo Estatuto de Roma de 1998 – em vigor desde 2002 –, o tribunal julga indivíduos a partir de quatro crimes internacionais: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de agressão.
O tribunal já condenou mais de 40 indivíduos desde que entrou em funcionamento. Uma característica marcante dessa corte é a possibilidade de decidir contra líderes em exercício, não há imunidade nesse sentido. A primeira decisão contra um líder foi tomada contra o ex-ditador do Sudão: Al-Bashir.
O TPI pode abrir investigação contra indivíduos de três formas: moto próprio, solicitação de Estados ou por determinação do Conselho de Segurança. Nem a Rússia nem a Ucrânia são membros do TPI. Contudo, o último autorizou ao tribunal investigar casos em seu território relacionados a conflitos. Por causa dessa conexão, o tribunal pôde decidir contra o líder russo.
Dentre as práticas que fundamentaram a decisão com base em medidas que configurariam crimes de guerra, está a deportação forçada de crianças de nacionalidade ucraniana para a Rússia.
Membros do TPI têm obrigações perante o tribunal, inclusive de fazer cumprir mandado de prisão contra qualquer indivíduo que seja objeto dessa medida. A África do Sul é membro do órgão. Considerando a independência do judiciário dentro do país sul-africano, a ida de Putin poderia ser constrangedora politicamente.
Esse, na verdade, não seria um fato inédito. Em 2015, Al-Bashir teve de sair às pressas do país quando estava em visita, por ter sido mobilizado o processo de prisão do ditador. Essa situação gerou uma crise política doméstica entre o então presidente sul-africano Jacob Zuma e o judiciário do país. Mais do que isso, a insatisfação de Zuma fez com que o então presidente liderasse uma mobilização de Estados africanos para sair da corte internacional.
Esse tipo de movimento contra cortes internacionais é definido na literatura como backlash – em artigo específico, publicado na Revista de Direito Internacional da Uniceub, em parceria com o professor Ernani Carvalho, me debrucei sobre o processo de backlash contra cortes internacionais de direitos humanos.
A justificativa para o backlash seria a de que o tribunal focaria em Estados com menor poder relativo. Na visão dos líderes africanos do movimento, o TPI sofreria de um viés crônico, dedicando-se quase que exclusivamente a países africanos. O movimento teve a adesão de diversos Estados africanos para uma saída em massa do organismo. Algo que, no entanto, não se configurou.
O argumento negligenciava algo fundamental, que põe por terra o suposto viés: a imensa maioria dos processos sobre Estados africanos foram enviados pelos próprios países para serem investigados pela corte – muitas vezes como forma de inviabilizar rivais políticos internos.
A despeito de recentes saídas – Burundi e Filipinas –, o backlash contra o TPI, ao menos em termos de retiradas, não prosperou. A África do Sul chegou a apresentar notificação de saída logo após os eventos envolvendo Al-Bashir, mas a Corte Constitucional do país declarou a notificação inconstitucional, por violar procedimentos legais internos.
A efetiva membresia da África do Sul indica, nesse sentido, que haveria uma expectativa de cumprimento de decisões do órgão no país, caso Putin resolvesse participar do evento do Brics. Isso não significa dizer que uma prisão necessariamente seria efetivada; contudo, considerando o precedente do caso Al-Bashir, no mínimo um embaraço diplomático e uma crise institucional doméstica se seguiriam se a determinação não fosse cumprida.
Todos que lidam com relações internacionais sabem da inerente característica do sistema internacional: a anarquia, no sentido que não há um governo mundial que tenha poder coercitivo sobre os Estados. Diferentemente do que ocorre no plano doméstico dos países, que o judiciário tem seu poder organizado a partir de uma estrutura hierárquica vertical, no plano internacional, para que as decisões de tribunais sejam aceitas, é necessário que os próprios Estados se comprometam com esse cumprimento.
A constatação desse fato leva a conclusões rápidas de que o direito internacional seria irrelevante, para os mais críticos. Se se mede a eficiência desse direito pela régua doméstica, de fato essa é a conclusão mais óbvia. Mas, se a estrutura internacional tem características diferentes, a sua eficiência precisa ser aferida por parâmetros igualmente diferentes.
Do ponto de vista político, o direito internacional serve para constranger Estados. Países diversos, mesmo aqueles não-democráticos, tendem, muitas vezes, a evitar compromissos que não seriam honrados, se assumidos, sobretudo no caso daqueles Estados que querem melhorar sua reputação internacional. Isso explica por que países como a China nunca se comprometeram perante o TPI.
Uma vez parte do tribunal, os chineses perderiam o controle de possíveis processos abertos contra seus nacionais – o que poderia ocorrer, por exemplo, para o caso da província de Xinjiang. Isso poderia gerar altos custos reputacionais. Se a membresia fosse irrelevante politicamente, Estados como a China seriam membros desde o início.
Mais do que custos sobre reputação, o direito internacional tende a ser mais efetivo em relação a Estados democráticos. Estes países são fundados no primado do Estado de Direito, devem seguir os compromissos que assumem a partir da sua própria lógica jurídica doméstica. Quando um tratado internacional é aceito por um Estado democrático – incluindo aqueles tratados que estabelecem tribunais internacionais –, suas normas passam a valer pelo menos como leis domésticas. Nesse sentido, o judiciário deve fazer cumprir essas leis. Por tanto, para além dos custos reputacionais, haveria também custos institucionais domésticos – isso poderia explicar a não participação dos Estados Unidos.
A não viagem de Putin à conferência do Brics atesta o efeito de constrangimento que o TPI gera para situações que envolvam Estados democráticos. Do ponto de vista político, os juízes que expediram mandato contra Putin têm ciência que, enquanto no poder, ele dificilmente será preso. Mas eles também têm conhecimento desse efeito constrangedor, já que indivíduos com mandados de prisão expedidos pela corte vêm tendo sua liberdade de circulação internacional claramente restringida, sobretudo quando considerando Estados democráticos.
Assim, em países democráticos membros do TPI, há uma predisposição institucional favorável ao tribunal. Por possuírem judiciários independentes, garantias para que líderes como Putin possam visitá-los sem riscos de crises políticas são significativamente menores do que em Estados-partes que não são democráticos. Isso vale também para o próprio Brasil.
O Estado Brasileiro é membro do TPI. A diplomacia brasileira participou ativamente do TPI desde as discussões para sua criação, na Conferência de Roma (1998). Mais do que isso, por meio da Emenda Constitucional 45, de 2004, o Brasil inseriu o TPI na própria constitucional (parágrafo 4º do art. 5º). A implicação disso é que, em uma hipotética visita de Putin ao Brasil, caso não houvesse o devido cumprimento do mandado de prisão, o fato poderia ser interpretado como uma violação constitucional.
A implicação clara disso é que, pelo menos por um bom tempo, Putin estará impossibilitado de visitar o Brasil. Arriscaria a dizer que, a despeito do que o presidente Lula falou na última reunião do G20 na Índia, enquanto o mandado estiver vigente, ele não visitará nosso país. O próprio ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, deu a entender que, se o líder russo vier ao Brasil, a tendência seria cumprir determinação da corte. Essa é uma restrição que o acompanhará em todos os países com o nível democrático funcional e que sejam membros do TPI. Putin não mais poderá visitar esses países enquanto a decisão persistir, a despeito da continuidade ou não do conflito.
É claro que se espera mais de um tribunal que foi criado para investigar e punir genocídio e crimes contra a humanidade do que um instrumento de constrangimento de um tribunal. Por outro lado, como dito, é preciso uma régua diferente para medir instrumentos de direito internacional, para que se possa evitar conclusões precipitadas que o condene à irrelevância. É importante ter-se em mente parâmetros domésticos para fazer com órgãos adjudicatórios civilizatórios como TPI possam ser mais eficientes, mas se a dinâmica da política internacional opera sobre outras regras, não faz sentido uma avaliação que não considere essas particularidades.
*Miguel Mikelli Ribeiro é colunista da Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro "Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares".
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