A escalada na crise com os EUA
A ofensiva dos EUA contra o Brasil combina pressões comerciais, sanções indiretas e investigações por práticas desleais, em meio a tensões políticas e tecnológicas. A retaliação inclui tarifas de 50%, ameaça de sanções por importações russas e investigações sobre o marco regulatório digital brasileiro, influenciada por lobby das Big Techs. A falta de diálogo político de alto nível entre os governos acirra o conflito e enfraquece a capacidade de resposta de Brasília

Depois da preocupação maior com as guerras da Ucrânia, de Gaza, do Irã, era previsível que o governo Donald Trump em algum momento se voltasse contra os países latino-americanos (o “quintal dos EUA”, no dizer do secretário da Defesa), cujos governos se distanciam da política de extrema direita em vigor em Washington. O secretário de Estado Marco Rubio, senador republicano pela Flórida, ultra-conservador, descendente de cubanos, conhecedor da situação na região, fez diversas declarações contrárias aos governos de esquerda na região.
Depois de medidas restritivas a Cuba, Venezuela, Nicarágua e Colômbia, o governo dos EUA parece ter escolhido o Brasil para escalar de forma drástica as medidas protecionistas contra o governo Lula, dominado pelo petismo ideológico, que é o alvo.
‘O presidente norte-americano anunciou que serão impostas sanções à Rússia, e indiretas a países que comprarem petróleo e gás de Moscou, como o Brasil’
Além da carta circular de Trump, devolvida por Lula por seus termos inaceitáveis de ingerência em assuntos internos, com verdadeira sanção comercial (tarifa de 50% sobre os produtos brasileiros exportados para os EUA), o presidente norte-americano, em conversa com o secretário geral da Otan, anunciou que, no caso de Putin não terminar a guerra na Ucrânia em 50 dias, serão impostas sanções à Rússia, e indiretas a países que comprarem petróleo e gás de Moscou, com tarifas de 100%, sendo especificamente mencionados, como potenciais países afetados. China, Índia e Brasil.
Uma terceira medida anunciada contra o Brasil foi a abertura de investigações sobre ilícitos comerciais no âmbito da seção 301 da lei de comércio norte-americana de 1974.
A investigação, que buscará determinar se “atos, políticas e práticas do Governo brasileiro relacionados ao comércio digital e serviços de pagamento eletrônico (pix); tarifas preferenciais injustas; interferência anticorrupção; proteção da propriedade intelectual; acesso ao mercado de etanol; e desmatamento ilegal são irracionais ou discriminatórios e oneram ou restringem o comércio dos EUA”. Sob orientação do presidente Trump, o USTR está iniciando uma investigação nos termos da Seção 301 também “sobre os ataques do Brasil às empresas americanas de mídia social, bem como outras práticas comerciais desleais que prejudicam empresas, trabalhadores, agricultores e inovadores tecnológicos americanos”.
‘A iniciativa de atacar o Brasil, em várias frentes, deve ter partido de poderosos grupos de alta tecnologia, as Big Techs’
Lendo com cuidado a carta devolvida ao presidente norte-americano e a do representante comercial (USTR), parece que a motivação de ambas não é política, nem especificamente comercial, porque o Brasil é deficitário no comércio com os EUA. A iniciativa de atacar o Brasil, em várias frentes, deve ter partido de poderosos grupos de alta tecnologia, as Big Techs, com grande influência sobre o presidente norte-americano.
Na carta circular enviada a todos os países, com a inclusão de parágrafos que nada têm a ver com as questões comerciais, o segundo parágrafo menciona “centenas de ordens de censura SECRETAS E ILEGAIS às plataformas da mídia social nos EUA”.
No tocante a carta do USTR abrindo investigações sob a seção 301, quem está por trás dessa iniciativa, segundo se informa, é a CCIA, sigla em inglês para a Associação da Indústria dos Computadores e Comunicações, grupo de lobby financiado pelas Big Techs dos EUA. A CCIA teria pedido ao governo dos EUA que monitore, questione e atue contra uma série de medidas tomadas pelo Brasil, desde o momento da suspensão da rede X de Elon Musk, passando pela lei geral de Proteção de Dados Pessoais, por taxas de vários tipos, pela regulamentação da Inteligência Artificial e pela que autoriza a Anatel a regular as plataformas digitais.
‘O governo brasileiro não está considerando as motivações reais por trás das medidas restritivas norte-americanas’
O governo brasileiro, até aqui, está concentrado na questão comercial pelos impactos da taxação de 50% sobre as empresas industriais e do agronegócio, mas não está considerando as motivações reais por trás das medidas restritivas norte-americanas.
O vice-presidente e ministro do Desenvolvimento e Comércio Exterior, Geraldo Alckmin, desde abril, vem mantendo contato em nível ministerial e técnico com o Departamento de Comércio e com o USTR. Alckmin pediu resposta à carta de maio com propostas de negociação sobre o tarifaço de abril, mas não houve reação à imposição de tarifa de 50%, e resposta as Big Techs, até porque a carta circular foi devolvida.
Os contatos em nível de comércio, contudo, não foram suficientes porque, por questões ideológicas, o governo Lula optou por não estabelecer canais de comunicação políticos e diplomáticos com a Casa Branca e o Departamento de Estado, o que impediu que houvesse a contestação da narrativa política da oposição bolsonarista e elevasse o nível dos contatos entre os dois governos para tratar do tarifaço.
‘A ausência de regras estáveis e previsíveis para serem invocadas nesses casos, exige uma nova postura do governo brasileiro’
O mundo mudou. A ausência de regras estáveis e previsíveis para serem invocadas nesses casos, exige uma nova postura do governo brasileiro. Como estão fazendo os principais parceiros dos EUA a atitude deve ser de pragmatismo e sem ideologia. Não basta assinalar a contradição e a politização da posição americana. Com uma pauta de negociação tão vasta e com posições tão diferentes e antagônicas no caso da agenda das Big Techs, Brasília precisa negociar em nível mais elevado, com a ida de alta autoridade a Washington para tentar reduzir significativamente a tarifa de 50% e propor a constituição de um grupo técnico para analisar todas as questões relacionadas com as demandas das Big Techs e com a investigação da seção 301.
A falta de contato de alto nível poderá acarretar problemas sérios, com medidas comerciais tomadas pela força com objetivo de obter ganhos políticos e econômicos, sobre o Brasil. A troca de farpas entre Lula e Trump e a referência às BigTechs e a retaliação no pronunciamento de quinta-feira (17) não ajudam a encontrar uma solução que limite o impacto negativo das medidas norte-americanas.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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