A possível visita de Putin ao Brasil – Entre a conveniência política e o dever jurídico
Permitir que Putin pise em solo brasileiro sem ser detido significará mais do que descumprir um tratado. Representará a corrosão de uma das poucas instituições globais voltadas à justiça e à reparação, em um mundo que assiste, perplexo, ao retorno da guerra como instrumento de poder

O possível desembarque de Vladimir Putin no Rio de Janeiro para a cúpula dos Brics em julho reabre uma ferida incômoda no compromisso brasileiro com o sistema internacional de justiça.
A existência de um mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) contra o presidente russo, sob acusação de crimes de guerra na Ucrânia, coloca o Brasil diante de uma escolha que transcende a diplomacia: cumprir uma obrigação legal e constitucional ou ceder a imperativos políticos e geopolíticos.
‘O que está em jogo, mais do que a presença de um chefe de Estado estrangeiro, é a credibilidade da ordem jurídica internacional da qual o Brasil se diz parte’
O que está em jogo, mais do que a presença de um chefe de Estado estrangeiro, é a credibilidade da ordem jurídica internacional da qual o Brasil se diz parte.
Desde 2002, com a ratificação do Estatuto de Roma, o Brasil assumiu obrigações claras com o TPI, entre elas, a de prender e entregar indivíduos contra os quais haja mandados da corte, como é o caso de Putin. A Constituição Federal de 1988 reforça essa vinculação ao dispor, em seu artigo 5º, parágrafo 4º, que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. O compromisso não é vago, tampouco condicional. É vinculante.
‘O governo Lula tem enviado sinais ambíguos, que são juridicamente problemáticos e minam os fundamentos de um sistema que busca responsabilizar autores de crimes contra a humanidade’
Ainda assim, o governo Lula tem enviado sinais ambíguos. Em 2023, o presidente declarou que Putin seria bem-vindo ao Brasil e que não seria preso. Tal declaração, além de juridicamente problemática, mina os fundamentos de um sistema que busca responsabilizar autores de crimes contra a humanidade e crimes de guerra, justamente aqueles que costumam ficar impunes quando protegidos por estruturas estatais ou por alianças políticas.
Defensores da não cooperação argumentam que a Convenção de Viena confere imunidade a chefes de Estado. Ocorre que o próprio Estatuto de Roma, assinado e ratificado pelo Brasil, é claro ao afirmar que nenhuma imunidade se aplica diante do TPI. Como reforçado por juristas, esse não é um debate aberto ou recente: é um consenso jurídico. Fugir dessa responsabilidade é ignorar o princípio pacta sunt servanda, de que os tratados devem ser cumpridos, e transforma o Brasil em território de exceção para líderes acusados de crimes internacionais.
‘A recusa em cooperar também esvazia o papel que o Brasil costuma reivindicar para si nas arenas multilaterais’
A recusa em cooperar também esvazia o papel que o Brasil costuma reivindicar para si nas arenas multilaterais. Um país que pleiteia um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU não pode, ao mesmo tempo, escolher quais regras internacionais vai cumprir. A seletividade jurídica enfraquece os regimes internacionais e estimula uma perigosa lógica de impunidade para os poderosos. Não por acaso, a Hungria de Viktor Orbán, que trilha uma rota antidemocrática, anunciou a saída do TPI após o mandado contra Netanyahu. O Brasil, mesmo sem sair formalmente, acena com a mesma leniência.
A ironia está no fato de que o TPI, muitas vezes acusado de seletividade contra o Sul Global, agora enfrenta resistência de países do próprio Sul quando se trata de responsabilizar líderes do Norte. O Brasil perde a chance de ocupar um lugar ético no debate internacional ao se colocar ao lado da Mongólia e da Hungria, e não dos países que vêm defendendo a integridade do sistema de justiça internacional mesmo quando ele atinge seus aliados.
‘A assimetria no tratamento dispensado pelo governo brasileiro a Vladimir Putin e Benjamin Netanyahu torna-se ainda mais evidente quando se observa a reação oficial diante dos respectivos mandados emitidos pelo TPI’
A assimetria no tratamento dispensado pelo governo brasileiro a Vladimir Putin e Benjamin Netanyahu torna-se ainda mais evidente quando se observa a reação oficial diante dos respectivos mandados emitidos pelo TPI. Enquanto Lula fez convites reiterados a Putin, chegando a garantir publicamente que ele não seria preso no Brasil, o mesmo zelo diplomático não foi estendido ao primeiro-ministro israelense.
Ainda que ambos sejam alvo de acusações graves, Putin por deportações forçadas de crianças ucranianas e Netanyahu por crimes de guerra em Gaza, o governo brasileiro demonstrou uma postura muito mais crítica e distante em relação a Israel, inclusive convocando seu embaixador após declarações ofensivas de Netanyahu.
A disparidade sugere que os princípios do direito internacional estão sendo manejados conforme conveniências políticas e afinidades ideológicas, e não por critérios jurídicos consistentes ou compromissos universais com a justiça.
‘A visita de Putin ao Brasil, se confirmada, não será apenas um episódio diplomático. Será um teste crucial à integridade do Estado brasileiro como parte da comunidade internacional comprometida com os direitos humanos e com a responsabilização de crimes atrozes’
A visita de Putin ao Brasil, se confirmada, não será apenas um episódio diplomático. Será um teste crucial à integridade do Estado brasileiro como parte da comunidade internacional comprometida com os direitos humanos e com a responsabilização de crimes atrozes. Não se trata de uma questão de alinhamento geopolítico, mas de fidelidade a princípios constitucionais e compromissos internacionais assumidos com plena soberania.
Mais grave ainda é que a eventual presença de Putin no Brasil, sem que seja cumprido o mandado de prisão expedido pelo TPI, pode configurar uma violação direta à Constituição Federal, que determina, de forma inequívoca, a submissão do país à jurisdição do Tribunal. Nesse cenário, o descumprimento deliberado dessa obrigação internacional poderia ser interpretado como crime de responsabilidade por parte do presidente da República, ensejando inclusive a abertura de processo de impeachment.
‘O caso escancara, assim, não apenas a erosão da justiça internacional, mas também o esvaziamento da prestação de contas no âmbito doméstico’
No entanto, chama atenção o silêncio da oposição, que, em outras circunstâncias, costuma invocar com fervor a defesa da legalidade e da ordem constitucional. A falta de reação revela um uso seletivo do discurso jurídico e moral, mais atento à conveniência partidária do que ao compromisso com os marcos institucionais do Estado de Direito. O caso escancara, assim, não apenas a erosão da justiça internacional, mas também o esvaziamento da prestação de contas no âmbito doméstico.
Permitir que Putin pise em solo brasileiro sem ser detido significará mais do que descumprir um tratado. Representará a corrosão de uma das poucas instituições globais voltadas à justiça e à reparação, em um mundo que assiste, perplexo, ao retorno da guerra como instrumento de poder. O Brasil, que já foi símbolo de diplomacia ativa e altiva, como o então Chanceler e hoje assessor especial do Presidente Lula, Celso Amorim, chamava, não pode agora se tornar cúmplice do silêncio e da omissão.
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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