A vitória de Trump, a derrota do Irã e o acordo Israel-Hamas
Trump é um dirigente com indiscutível capacidade de avançar no equacionamento da questão palestina, mas nunca revelou interesse pelo tema nem pela solução de dois Estados – a única capaz de produzir uma paz duradoura entre palestinos e israelenses
Após 15 meses de guerra devastadora, o primeiro-ministro do Qatar anunciou, em 15 de janeiro de 2025, um acordo de cessar-fogo entre Hamas e Israel.
O acordo, antecipado por Trump, confirmado por Biden, mas não por Netanyahu, consta de três fases, tendo sido definida apenas a primeira, que prevê cessar-fogo temporário de seis meses, libertação de 33 reféns israelenses e de centenas de prisioneiros palestinos. As demais fases, a serem negociadas, contemplam a retirada de tropas israelenses da Faixa de Gaza, a libertação dos demais reféns, o retorno a Israel dos corpos dos reféns mortos e o início de um plano para reconstrução da Faixa de Gaza.
O acordo teve como fator decisivo a vitória eleitoral e a proximidade da posse, em 20 de janeiro, de Trump, que fez declarações destinadas a capitalizar dividendos políticos. “Estou empolgado com o retorno de reféns americanos e israelenses para suas casas”. “Aproveitamos o momento do cessar-fogo para expandir os históricos Acordos de Abraão”.
De fato, Netanyahu não queria o acordo, mas foi obrigado a aceitar, diante das robustas pressões de Trump, que, ao contrário de Biden, ameaçava concretamente retirar o apoio norte-americano ao primeiro- ministro caso não aceitasse o acordo. De forma análoga, o enviado de Trump ao Oriente Médio, Steve Witkoff, impôs ao Hamas as condições do acordo, imediatamente aceitas.
Outros fatores relevantes contribuíram para a concretização do acordo: o enfraquecimento do Irã, em consequência dos ataques de mísseis israelenses a instalações militares; o desmantelamento militar do Hamas e do Hezbollah por parte de Israel; e o desgaste doméstico de Netanyahu com os resultados insatisfatórios da guerra – sobrevivência do Hamas e o não retorno dos reféns. Com o Irã e o Hezbollah fragilizados, bem como com a queda do regime de Assad na Síria, o Hamas não tinha quem o defendesse.
O acordo só foi finalizado após a aprovação em 18 de janeiro, pelo Gabinete de Segurança de Israel, com 11 membros, e pelo Gabinete de Governo, integrado por todos os 33 ministros de Estado da coalizão de Netanyahu, sendo que 24 votaram a favor. Esse resultado tem forte impacto popular – o fim da guerra tem aprovação de 75% a 80% da população – e elimina o cenário que impedia o cessar-fogo, ou seja, a retirada do apoio dos conservadores a Netanyahu, o que exigiria novas eleições com provável derrota do primeiro-ministro.
O acordo é um ponto de inflexão fundamental na guerra. Revela o peso decisivo de Trump sobre o establishment político e de segurança israelense. Também sobre o Qatar e o Hamas, a influência de Trump foi o fator chave para o acordo. O chefe do Gabinete de Mártires e Prisioneiros do Hamas, Zaher Jabareen, declarou que “os obstáculos para aderir aos termos do acordo de cessar-fogo foram resolvidos”.
Em gesto revelador dos novos tempos, outro alto funcionário do Hamas, Bassem Naim, argumentou que o acordo só foi possível pela iminente posse de Trump, e acusou Biden de ser cúmplice de Israel, a quem emprestava irrestrito apoio. Nessa mesma linha, o primeiro-ministro do Qatar também elogiou Trump e afirmou que sua gestão poderá “criar um impacto maior” no Oriente Médio.
A guerra afastou as monarquias do golfo de Israel, mas não eliminou uma eventual reaproximação, na forma de retomada dos Acordos de Abraão. Apesar dessa possibilidade, as feridas e cicatrizes da guerra continuarão a manchar a imagem de Israel junto aos vizinhos árabes e à comunidade internacional. A devastação humana e material é impactante. Segundo levantamento baseado em imagens de satélites da Faixa de Gaza, cerca de 60% das construções e 68% das estradas foram destruídas ou danificadas; o saldo de palestinos mortos soma cerca de 46 mil; quase 95% das escolas foram atingidas; todas as universidades foram destruídas; e apenas 17 dos 36 hospitais funcionam, mas com deficiências graves, inclusive falta de anestesia.
O acordo levanta três questões centrais para o novo equilíbrio de poder no Oriente Médio: a relação entre Israel e Arábia Saudita; a política de Trump com relação ao Irã; e o encaminhamento da questão palestina, por meio da solução de dois Estados.
O estabelecimento de relações diplomáticas entre Israel e as monarquias do Golfo, no âmbito dos Acordos Abraão, iniciaram um processo de reconfiguração do jogo de poder na região. A Arábia Saudita estava prestes a normalizar suas relações com Israel, quando ocorreu o ataque terrorista do Hamas ao território israelense, em 7 de outubro de 2023, e, em seguida, a desproporcional resposta israelense.
Essa dupla barbárie abortou aquele processo de normalização de relações diplomáticas entre Israel e Arábia Saudita. Entretanto, caso esse processo venha a ser retomado, Israel poderá resgatar a influência regional perdida em consequência da guerra. Ao mesmo tempo, poderá fortalecer os esforços de reconstrução de Gaza, com a combinação de tecnologia israelense e de finanças sauditas.
A outra questão central acima mencionada diz respeito ao Irã. As investidas das Forças de Defesa Israelense (FDI) sobre a Faixa de Gaza não produziam os dois resultados esperados – eliminação do Hamas e retorno dos reféns – o que levou Netanyahu a lançar a “nova fase” da guerra. Essa consistiu no desmantelamento do poder militar do Hezbollah em ataques de Israel ao território iraniano e vice-versa, que tiveram o efeito de revelar indiscutível superioridade militar e logística israelense. Essa dupla fragilização – do Irã e de seu principal proxy – produziu um novo equilíbrio de poder na região.
Assim, Trump estará diante de um Oriente Médio muito distinto do que encontrou em seu primeiro mandato. Além de empoderado por ter sido o responsável pelo acordo de cessar-fogo, Trump encontrará um Irã enfraquecido e inferiorizado diante de Israel. No primeiro mandato, ele retirou os EUA do importante acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano, de 2015. O que fará no segundo mandato? Fará opção pela “pressão máxima”? Chegará ao ponto de apoiar o projeto de eliminar as instalações nucleares iranianas?
A disputa sobre a hegemonia mundial com a China foi a primeira prioridade do primeiro mandato de Trump. Essa estratégia explicou a tentativa de reduzir o ativismo dos EUA no Oriente Médio. Os Acordos de Abraão tinham esse propósito implícito, porque a normalização de relações diplomáticas entre os dois principais rivais na região – Israel e Arábia Saudita – reduziria as tensões e aliviaria os EUA de arbitrar conflitos. Como visto, a tragédia do 7 de outubro de 2023, com 1.200 mortes e cerca de 250 reféns israelenses, acrescida da barbárie da resposta de Israel, com saldo de mais de 46 mil mortes de palestinos, abortou os Acordos de Abraão.
É provável que no segundo mandato, Trump retome seu projeto de desescalar o envolvimento dos EUA no Oriente Médio e na guerra na Ucrânia. A enorme pressão sobre Netanyahu para aceitar o acordo entre Israel e Hamas é claro indicador nesse sentido, assim como os enfáticos anúncios de que, uma vez eleito, rapidamente terminaria com a guerra na Ucrânia.
Para tornar possível uma desescalada política dos EUA no Oriente Médio, seria preciso criar um clima de redução das tensões na região. O enfraquecimento do Irã e de seus proxies operam nesse sentido, bem como a eventual retomada dos Acordos de Abraão. Assim, o novo equilíbrio de poder na região poderá abrir janela de oportunidade para equacionar a questão central que historicamente divide o Oriente Médio – a criação de um Estado palestino.
Entretanto, o drama palestino nunca mereceu qualquer importância por parte de Trump. Uma vez aprovado o acordo, esse será o grande dilema do Oriente Médio. Trump é um dirigente com indiscutível capacidade de avançar no equacionamento da questão palestina, mas nunca revelou interesse pelo tema nem pela solução de dois Estados – a única capaz de produzir uma paz duradoura entre palestinos e israelenses.
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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