Os significados da independência
Interpretações sobre o Sete de Setembro tendem a ver a formação do Brasil como caso isolado e fruto de mudanças pacíficas e conservadoras. Para professor, é preciso entender o contexto geopolítico da separação de Portugal, e o país precisa construir um papel regional a fim de para alcançar sua meta de ter maior influência global
Interpretações sobre o Sete de Setembro tendem a ver a formação do Brasil como caso isolado e fruto de mudanças pacíficas e conservadoras. Para professor, é preciso entender o contexto geopolítico da separação de Portugal, e o país precisa construir um papel regional a fim de para alcançar sua meta de ter maior influência global
Por Anthony W. Pereira*
No dia Sete de Setembro, os brasileiros comemorarão o grito do Ipiranga, que ocorreu há 201 anos nas margens do rio Ipiranga, o rio vermelho na língua tupi. Trata-se de uma declaração não escrita de independência feita por Dom Pedro I, o regente do Brasil, que tinha 23 anos e era membro da família real de Bragança, a mesma que governava Portugal. Não foi a conquista definitiva da independência, nem mesmo o início do movimento pela independência, mas o fim do início de uma luta pela soberania política.
À distância, a Independência do Brasil parece um caso estranhamente insular, complexo e europeu. Alguns observadores consideram que a independência foi apenas uma jogada entre Dom Pedro I e seu pai, o Rei João VI de Portugal, para manter a família Bragança no poder em ambos os lados do Atlântico. A independência também parece ser mais uma daquelas importantes transições políticas brasileiras, como a abolição da escravatura ou a Proclamação da República, em que os conflitos foram suavizados por meio de um processo intenso de diálogos e negociações entre elites, resultando em uma mudança relativamente pacífica e muito conservadora. Além disso, pode-se pensar que a independência do Brasil não teve nada a ver com as independências do resto da América Latina, do Caribe e da América do Norte, e que foi única: uma jabuticaba, na gíria política brasileira.
Essas visões, entretanto, são enganosas. Na verdade, a independência foi o resultado das mesmas mudanças econômicas, forças geopolíticas e novas ideias que produziram a mudança no resto da América. As influências econômicas incluíram a transição do mercantilismo, um sistema relativamente fechado de capitalismo de Estado, para um sistema mais aberto de comércio internacional.
As forças geopolíticas incluíram as revoluções dos EUA e da França. Na Europa, a França criou uma república com um poderoso exército de cidadãos, eventualmente liderado por Napoleão, que invadiu países vizinhos e ameaçou monarquias absolutas no continente. As guerras têm a ver com logística, pessoal e material, mas também têm a ver com ideias, como estamos vendo hoje na Ucrânia. As guerras napoleônicas abalaram profundamente as monarquias absolutistas. Quando os franceses invadiram Portugal, em 1807, e a Espanha, em 1808, as monarquias absolutistas desses países foram ameaçadas e forçadas a se mudar.
Havia muitas ideias novas. Entre elas estavam a liberdade religiosa, a separação de poderes, os direitos naturais, a igualdade de cidadania, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e a liberdade de reunião. A ideia de que os arranjos e as instituições políticas não eram divinamente ordenados, mas sim sujeitos à razão humana e deveriam ser reformados de acordo com os desejos do “povo” em um determinado território levou inevitavelmente à conclusão de que a hierarquia social medieval, com seus monarcas absolutos, divisões de castas, dogmas e hostilidade à ciência, deveria ser abandonada.
Duas ideias foram especialmente importantes. Primeiro, a soberania não emanava do corpo de um governante hereditário que tinha o direito divino de governar seus súditos. A soberania vinha do povo (embora houvesse intensos debates sobre como defini-lo). Em segundo lugar, o povo não era singular, era plural. Foi aí que o liberalismo entrou em cena. O povo deveria ter o direito de entrar voluntariamente em um contrato social, fazendo com que seus representantes produzissem uma constituição escrita. O poder tinha de ser autolimitado. O despotismo tinha de ser evitado – tanto o despotismo de um monarca hereditário quanto o despotismo de um tirano que viesse do povo.
As invasões francesas a Portugal em 1807 e à Espanha um ano depois desencadearam uma revolução liberal. As invasões levaram diretamente à criação da Assembleia Constituinte em Cádiz, que elaborou a nova Constituição espanhola de 1812, e à Revolução Liberal no Porto, que levou às Cortes e à Constituição portuguesa de 1822. Em outros lugares, o conflito entre a Grã-Bretanha e a França levou ao incentivo britânico à independência política na América Espanhola, articulado de forma mais clara pelo Ministro das Relações Exteriores britânico George Canning (1807-1809 e novamente em 1822-1827). Essa revolução liberal afetou o Brasil, assim como o restante da América Latina, do Caribe e da América do Norte.
Apesar das declarações sobre a natureza não violenta de grande parte das mudanças políticas brasileiras, a separação do Brasil de Portugal não foi pacífica. Ela também foi precedida por revoltas de grupos que queriam um tipo de independência muito diferente daquela declarada por Dom Pedro I.
Houve resistência dos tupis e de outros povos indígenas e, às vezes, esses grupos se mudaram para o oeste para evitar o contato com os europeus e seus descendentes no litoral. Na Inconfidência Mineira de 1789, na Conjuração Baiana (ou Revolta dos Alfaiates) de 1798-99 e na Revolução Pernambucana de 1817, três visões diferentes de independência, todas mais radicais do que a que foi de fato alcançada, foram articuladas e reprimidas com força. Na Conjuração Baiana, alguns rebeldes foram inspirados pela Rebelião dos Escravos de 1791 no Haiti, um conflito que levou à independência desse país em 1804.
Estima-se que de 2.000 a 3.000 pessoas morreram lutando contra o domínio colonial português no Brasil, embora a população possa ter se identificado mais com sua província do que com seu país recém-nascido. Essas perdas são menores do que as estimadas 25 mil mortes na Guerra da Independência dos EUA ou as centenas de milhares que se acredita terem perecido nas guerras de independência da América Espanhola. No entanto, o povo brasileiro foi à guerra e houve batalhas na Cisplatina (onde as tropas portuguesas se renderam em Montevidéu), na Bahia e em outros lugares do norte, como Maranhão e Pará. E o Brasil lutou com tropas irregulares e mercenários já que as forças armadas do Brasil, na época, estavam repletas de oficiais leais a Portugal.
O grito do Ipiranga em Sete de Setembro de 1822 não é, portanto, um evento singular na história da América Latina. Ele compartilha uma afinidade com o grito de Dolores do padre Miguel Hidalgo no México em 1810, o grito de Lares de Ramón Emeterio Betances em Porto Rico em 1868 e o grito de Yara em Cuba de Carlos Manuel Céspedes no mesmo ano. A declaração brasileira no Ipiranga é diferente em um aspecto, já que foi proferida por um membro de uma família real europeia que não havia nascido no Novo Mundo, mas, como as outras três, marca o início de uma luta contra o domínio colonial.
Todas as quatro declarações foram aproveitadas pelo povo porque representavam a mesma aspiração e objeções semelhantes a um colonialismo que criava monopólios comerciais para a metrópole, tributava a riqueza da colônia em benefício da própria metrópole e tentava governar por meio de editais e decretos que não refletiam a realidade social das colônias e que, muitas vezes, eram impossíveis de serem promulgados porque se baseavam em uma realidade a milhares de quilômetros de distância.
O que o Brasil obteve com a independência foi radicalmente imperfeito. A escravidão foi mantida e – o que é único nas Américas – a monarquia foi preservada. Mas Pedro I era um imperador constitucional. Na Constituição de 1824, ele tinha um poder moderador, mas não absoluto. Nesse compromisso, é possível ver as sementes da república mais liberal que o Brasil acabou se tornando.
Se a luta pela soberania política no Brasil foi parte de um movimento mais amplo que envolveu as Américas, isso tem implicações para o que a independência pode significar hoje. A independência tem uma conotação tanto doméstica quanto internacional. No âmbito interno, significa a autonomia política necessária para a busca do desenvolvimento econômico e da democracia em um determinado território. Internacionalmente, ela sugere não apenas autonomia, mas participação efetiva em um sistema de Estados. Não é sinônimo de isolamento.
Se os administradores do Estado brasileiro quiserem atingir sua meta de maior influência global para o Brasil, a região, definida pragmaticamente como América do Sul, deve ter um papel importante como meio para esse fim. O Brasil sempre terá seus críticos, mas poderia fazer mais para buscar a resolução coletiva de problemas comuns em sua região. Apesar das dificuldades inerentes a esse empreendimento, o Estado brasileiro poderia investir em bens públicos regionais e promover a colaboração com seus vizinhos em áreas políticas como comércio, proteção ambiental, migração, tráfico de drogas, direitos humanos, proteção da democracia e segurança. Talvez como resultado de tais esforços possam surgir soluções sul-americanas para os problemas sul-americanos. Esse resultado seria uma atualização adequada da promessa incorporada pelo grito do Ipiranga.
Anthony W. Pereira é colunista da Interesse Nacional, diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University e professor visitante na Escola de Assuntos Globais do King’s College London.
Tradução de Letícia Miranda
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Referências
Perry Anderson, Brazil Apart: 1964-2019 (London: Verso, 2019).
Cecília Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta (eds.) Dicionário da Independência do Brasil: História, Memória e Historiografia (São Paulo: Edusp: Publicações BBM, 2022).
Paulo Rezzutti, Independência: A história não contada: A construção do Brasil 1500-1825. (São Paulo: LeYa Brasil, 2022).
Anthony W. Pereira é diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University e professor visitante na Escola de Assuntos Globais do King’s College London, onde dirigiu o King’s Brazil Institute.
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