A política da negação – Bolsonarismo e política externa brasileira
A presença internacional do Brasil sob Bolsonaro foi marcadamente diferente de tudo visto na história da República, com alinhamento incondicional a Trump e ecos de tropos ideológicos de extrema-direita. Para professor, ex-presidente reverteu todas as políticas de governos anteriores desde os anos 1990 em uma área normalmente marcada por um alto grau de profissionalismo, continuidade e tradição
A presença internacional do Brasil sob Bolsonaro foi marcadamente diferente de tudo visto na história da República, com alinhamento incondicional a Trump e ecos de tropos ideológicos de extrema-direita. Para professor, ex-presidente reverteu todas as políticas de governos anteriores desde os anos 1990 em uma área normalmente marcada por um alto grau de profissionalismo, continuidade e tradição
Por Anthony W Pereira*
A política externa brasileira sob o presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) foi marcadamente diferente de tudo visto na história da República. Alinhada incondicionalmente ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e ecoando tropos ideológicos de extrema-direita, como a oposição ao “globalismo”, “marxismo cultural” e “ideologia de gênero”, a política reverteu não apenas as prioridades dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) de 2003 a 2016, mas também as dos governos do PSDB de Fernando Henrique Cardoso de 1995 a 2002. Em uma área de política anteriormente marcada por um alto grau de profissionalismo, continuidade e tradição, os quatro anos do presidente Bolsonaro representaram uma ruptura sem precedentes.
Primeiros Movimentos
A campanha para a Presidência de Bolsonaro começou em 2016. O bolsonarismo parecia estar intimamente alinhado ao trumpismo nos Estados Unidos. Ao falar de bolsonarismo, refiro-me não apenas às declarações do próprio Bolsonaro, que raramente vão além de slogans curtos, mas o termo é usado de maneira mais ampla para se referir às expressões de crença por ideólogos associados a Bolsonaro, incluindo membros de seu gabinete. Bolsonaro fez campanha em 2018 como um candidato preocupado com a influência da China no Brasil. Ele também atacou o Fórum de São Paulo, uma associação de partidos de esquerda e centro-esquerda na América Latina e no Caribe que se reuniu pela primeira vez em 1990 para discutir alternativas ao neoliberalismo, e o Acordo de Paris de 2015, que envolvia reduções voluntárias nas emissões de carbono para combater as mudanças climáticas.
Uma vez eleito, Bolsonaro agiu rapidamente para sinalizar uma nova direção nas relações internacionais do Brasil. Ele nomeou Ernesto Araújo, um embaixador até então obscuro e diretor do Departamento de Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos do Itamaraty, como seu ministro das Relações Exteriores. O artigo de Araújo, Trump e o Ocidente, de 2017, deu uma ideia do que estava por vir.
O artigo é uma mistura bizarra de dogma reacionário e teorias da conspiração. Afirma que Trump, um dos presidentes mais transacionais e interessados em si mesmos na história dos EUA, estava envolvido em uma política externa “romântica” que buscava “recuperar heróis e um sentido de destino” para o Ocidente. Araújo também argumenta que os EUA e a Rússia poderiam formar uma aliança como “as duas grandes potências cristãs”, lutando juntas contra o globalismo. Ele rejeita “as regras tradicionais geoestratégicas” em favor de algo mais místico: uma análise “geopsíquica” ou “psicopolítica”, também referida como “metapolítica” e “teopolítica”. O ensaio termina de maneira incoerente com a injunção de que “apenas um Deus pode nos salvar” e “apenas Trump ainda pode salvar o Ocidente”. O ensaio oferece muito mais insights sobre o estado mental de seu autor do que sobre os desafios da política externa brasileira.
Araújo tem pouca paciência para os valores iluministas de ceticismo radical, investigação racional, direitos individuais e tolerância religiosa. Em vez disso, parece preferir a hierarquia social, a ordem, o ufanismo e o dogma religioso. Ele afirma que o “marxismo cultural” “promove a diluição do gênero e do sentimento nacional e deseja um mundo de ‘fluidez de gênero e cosmopolitas sem pátria'”. Ele afirma, sem qualquer evidência, que “o significado da nação foi banido na corrente cultural e social da Europa”. Ele também argumenta, novamente sem qualquer evidência, que “os europeus não se sentem mais parte da mesma história de seus ancestrais” e que a “União Europeia pasteurizou o passado e tornou a Europa um conceito burocrático e um espaço cultural vazio”.
Em 28 de junho de 2019, a União Europeia e o Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) anunciaram um acordo comercial entre os blocos econômicos, encerrando quase vinte anos de negociações intermitentes. Dadas as opiniões expressas em Trump e o Ocidente, esperaria-se que Araújo rejeitasse ou pelo menos expressasse reservas sobre o acordo. Em vez disso, ele revelou a natureza fictícia de seus entusiasmos ao abraçar calorosamente o acordo e falsamente atribuí-lo a seus próprios esforços diplomáticos. Devido a objeções de vários membros da UE, incluindo Irlanda, França e Áustria, os estados da UE ainda não ratificaram o acordo, e o ministro das Relações Exteriores não tinha os meios para superar essas reservas.
Reversão
O presidente Bolsonaro começou seu mandato com a intenção de negar as prioridades de seus antecessores. Ele fez campanha em 2018 como crítico do investimento chinês no Brasil. Ele via o Acordo de Paris de 2015 sobre mudanças climáticas como parte de um complô “globalista” para restringir a soberania nacional e, portanto, era contra. Ele testemunhou a administração Trump movendo a embaixada dos EUA em Israel de Tel Aviv para Jerusalém e expressou o desejo de que o Brasil fizesse o mesmo. Ele considerava com desdém a iniciativa diplomática de Lula na África, criando novas embaixadas e promovendo soluções brasileiras para os problemas africanos, e queria abandoná-la. Ele expressou desdém pelos governos de centro-esquerda e de esquerda na América do Sul e não fez nenhuma tentativa de distinguir entre os dois.
No entanto, muitas dessas preferências não foram postas em prática ou foram ativamente contestadas dentro da administração Bolsonaro. Em novembro de 2020, o farol do presidente Bolsonaro, o presidente Trump, perdeu a eleição presidencial nos Estados Unidos para seu rival democrata Joe Biden. Bolsonaro foi um dos últimos chefes de Estado a reconhecer a vitória eleitoral de Biden, fazendo isso apenas em 15 de dezembro de 2020.
Neste ponto, a política externa brasileira estava sem rumo, sem um bom relacionamento com a administração entrante nos Estados Unidos, desprovida de uma política para sua própria região da América do Sul e evitada pela maioria dos governos da Europa.
Em 29 de março de 2021, uma grande reformulação ministerial viu o ministro das Relações Exteriores, Araújo, deixar o governo. Ele havia se envolvido em um conflito com membros do Congresso que, refletindo as opiniões da comunidade empresarial, entre outros interesses, se opuseram à postura negacionista do ministro em relação à pandemia de Covid-19 e suas críticas à China, destino de quase um terço das exportações do Brasil. A queda de Araújo representa o fim da fase ativista do Bolsonarismo na política externa brasileira. Seu substituto como ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto França, era uma figura muito menos ideológica e divisiva.
Os Limites da Política da Negação
Os princípios da política externa da administração Bolsonaro refletiam uma série de negações: não ao “marxismo cultural”; não aos governos de esquerda na América Latina; não à África; não à igualdade de gênero e orientação sexual; não à igualdade racial; não ao ambientalismo; não aos direitos humanos; não à China; não ao presidente Joe Biden dos Estados Unidos.
Mas tinha pouco a oferecer em termos de alternativas construtivas a essas negações. A visão tradicionalista do mundo do Bolsonarismo oferecia binarismos simplistas em vez da nuance, complexidade e destreza do trabalho diplomático bem-sucedido. Em vez de autonomia, oferecia alinhamento automático com o trumpismo nos Estados Unidos. Em vez de multipolaridade cooperativa, oferecia oposição ao “globalismo” e à “agenda global”, uma aliança com o populismo de direita transnacional agressivo que via grande parte da agenda internacional, incluindo o respeito aos direitos humanos e os compromissos para mitigar e adaptar-se às mudanças climáticas, como restrições inaceitáveis à soberania nacional. Em vez de secularismo e tolerância, oferecia uma abordagem teocrática para a política mundial e teorias alarmistas sobre ameaças ao Ocidente cristão. E aliava o Brasil a governos cujos líderes usavam abertamente tropos etnonacionalistas e racistas para mobilizar sua base.
Essa política externa envolvia uma leitura tendenciosa da história e mal percebia as linhas geopolíticas contemporâneas do mundo. Suas fraquezas mais sérias e fatais eram sua cegueira para as realidades materiais da economia brasileira e sua dependência da presidência de Trump nos EUA.
Com base em teorias conspiratórias, em termos práticos, era inviável. O negacionismo não é uma base suficiente para a política externa. Isso é algo que Javier Milei, presidente eleito da Argentina pelo Partido Avanços da Liberdade, pode aprender para sua desvantagem. Ele dizia que não negociaria com a China nem falaria com o presidente Lula se fosse eleito presidente, mas tais pronunciamentos alarmaram tanto a comunidade empresarial quanto muitos eleitores comuns em seu próprio país.
O que a administração Bolsonaro alcançou na arena da política externa foi realizado apesar, e não por causa, de suas predileções ideológicas. Seu impacto principal foi tornar o Brasil um pária internacional, um país cujo líder aplaudia a destruição da Floresta Amazônica e cujo manuseio inepto e anticientífico da pandemia de Covid-19 levou a mortes desnecessárias. Isso foi quase completamente revertido, e seu retorno é tão improvável quanto seria impopular.
Anthony W. Pereira é diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University e professor visitante na Escola de Assuntos Globais do King’s College London, onde dirigiu o King’s Brazil Institute.
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Referências
Amorim, Celso. 2015. Teerã, Ramalá, e Doha: Memórias da Política Externa Ativa e Altiva. São Paulo: Benvirá.
Araújo, Ernesto Henrique Fraga. 2017. “Trump e o Ocidente”. In Cadernos de Política Exterior, Ano III, Número 6, Segundo Semestre, pp. 323-357.
Barbosa, Rubens. 2011. O Dissenso de Washington. Rio de Janeiro: Agir.
Kyrillos, Gabriela M. and Fabiane Simoni. 2022. “Raça, genero e direitos humanos na política externa brasileira no governo Bolsonaro (2019-2021)” in Revista Direito e Práxis, Volume 13, Número 3, pp. 1874-1896.
Nascimento, Jefferson Ferreira do and Maria do Socorro Sousa Braga. 2021. “Brasil nos Tempos do Bolsonarismo: Populismo e Democracia Antiliberal” in Política: Revista de Ciencia Política Volume 59, Número 2, pp. 79-120.
Pereira, Anthony W. 2023. Right-Wing Populism in Latin America and Beyond. New York: Routledge.
Rato, Vasco. 2023. Tsunami: Trump, Trumpismo, e a Europa. Coimbra: Actual.
Vidigal, Carlos Eduardo. 2019. “Bolsonaro e a Reorientação da Política Externa Brasileira”. In Meridiano: Journal of Global Studies, Volume 47, Number 20.
É diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center da Florida International University, professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London e membro sênior da Canning House
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