O intermediário – Por que o Brasil pode ser uma ponte para os dois lados de um mundo dividido
O mundo está cada vez mais bipolar, dividido entre os Estados Unidos e a China, o que aumenta as tensões na política internacional e amplia os desafios para a ordem global no século XXI. Para professor, o Brasil está bem posicionado entre os dois países e especialmente preparado para assumir um papel de mediador
O mundo está cada vez mais bipolar, dividido entre os Estados Unidos e a China, o que aumenta as tensões na política internacional e amplia os desafios para a ordem global no século XXI. Para professor, o Brasil está bem posicionado entre os dois países e especialmente preparado para assumir um papel de mediador
Por Anthony W. Pereira*
O momento unipolar pós-Guerra Fria, celebrado com triunfalismo desenfreado por alguns comentaristas, acabou há muito tempo, soterrado pela crise financeira de 2008-2009 e pela retirada nada triunfal das tropas americanas do Iraque em 2011 e do Afeganistão em 2021, após anos de guerras dispendiosas e malsucedidas. O mundo agora está cada vez mais bipolar. A invasão russa da Ucrânia acelerou essa tendência.
Por um lado, os Estados Unidos, potência hegemônica da ordem pós-Segunda Guerra Mundial e arquiteto de suas principais instituições multilaterais, defendem a preservação do status quo, um sistema supostamente “baseado em regras” no qual os interesses dos EUA são dominantes, especialmente na esfera militar.
Por outro lado, a China, emergindo de seu “século de humilhação” para se tornar o maior exportador mundial de bens manufaturados e uma fonte cada vez mais importante de investimento estrangeiro direto e financiamento para o desenvolvimento, defende a reforma democratizante da governança global. Os EUA e a China “estão no meio de uma competição estratégica para moldar o futuro da ordem internacional” (US National Security Strategy 2022: 1).
As descrições desse mundo dividido variam. Chamá-lo de “Ocidente” versus “o resto” não é realmente preciso, já que Estados como Cingapura, Malásia, Camboja, Filipinas, Indonésia, Tailândia, Taiwan, Vietnã, Japão e Coréia do Sul encontram uma causa comum com os Estados Unidos na tentativa de limitar o poder chinês na Ásia. Como revelou a votação sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia na Assembleia Geral das Nações Unidas em 12 de outubro de 2022, em todas as regiões do mundo, alguns Estados gravitam em torno do eixo russo-chinês, enquanto outros estão mais firmemente no campo EUA-Europa.
Alguns Estados estão no meio do caminho. Índia, Turquia, África do Sul e Arábia Saudita vêm à mente. O Brasil é um deles. Há muitas razões pelas quais os arquitetos da política externa do Brasil devem se ver como os únicos capazes de administrar boas relações tanto com a China quanto com os Estados Unidos, apesar do fosso cada vez maior entre essas duas grandes potências.
As afinidades do Brasil com a China remontam aos tempos do império marítimo português, quando o Brasil era uma escala para navios portugueses indo e voltando da Ásia. Na era moderna, ambos os Estados compartilham a sensação de que estão destinados a uma maior influência nos assuntos mundiais.
Os dirigentes do Estado brasileiro, convencidos de que a unipolaridade é contrária aos interesses brasileiros, aprovam o desafio da China à hegemonia dos Estados Unidos. Eles estão impressionados com o rápido desenvolvimento econômico da China e esperam levar o Brasil além de seu papel de fornecedor de commodities para a economia chinesa, esperando se beneficiar do investimento chinês em energia limpa e infraestrutura no Brasil e talvez do compartilhamento de algumas formas de tecnologia.
O Brasil também tem fortes laços com os EUA. Ambos os países travaram guerras de independência contra uma potência colonial europeia. Ambos são hoje democracias multirraciais com sistemas políticos presidenciais semelhantes. A estimativa de brasileiros morando nos Estados Unidos é de cerca de 2 milhões de pessoas, e as culturas dos dois países influenciam uma à outra. Politicamente, os gestores da política externa do Brasil querem que os EUA levem o Brasil a sério como um Estado globalmente influente e não apenas mais uma parte da América Latina.
Esses mesmos gerentes podem ver a confusão e as contradições da política dos EUA em relação à China. O capital e a diplomacia dos EUA desempenharam papéis decisivos na ascensão da China como grande potência. A demanda dos EUA por suas exportações continua a sustentar o setor manufatureiro chinês. Em 2022, as importações americanas da China totalizaram US$ 690,6 bilhões, um recorde, contribuindo para o déficit comercial geral dos EUA de US$ 945 bilhões no mesmo ano. A postura dos EUA sobre a necessidade de impedir o domínio chinês nos setores de alta tecnologia não se coaduna com o tremendo grau de integração das economias dos dois países.
Os gestores da política externa do Brasil podem ver a diferença entre os interesses brasileiros e americanos quando se trata da China. Por exemplo, ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil não tem déficit comercial com a China, nem a inovação tecnológica chinesa ameaça o Brasil. Além disso, a insistência dos EUA de que se opõe à influência chinesa porque a China não é democrática carece de consistência. Como mostra o Oriente Médio contemporâneo, os EUA estão dispostos a apoiar regimes não democráticos quando eles atendem aos interesses americanos.
Serem céticos e autônomos em relação aos Estados Unidos não torna os dirigentes da política brasileira apoiadores inquestionáveis das aspirações chinesas à supremacia global. Eles não querem trocar os EUA pelo unilateralismo chinês. A diplomacia chinesa do “lobo guerreiro” contraria a preferência brasileira por discretas negociações multipolares no quadro de claras regras internacionais. As objeções de Estados menores da Ásia à projeção do poder chinês na região ecoam no Brasil porque soam como as objeções brasileiras à hegemonia dos EUA no Hemisfério Ocidental, como quando o Brasil expressou preocupação com as bases militares dos EUA na Colômbia durante a presidência anterior de Lula no anos 2000.
Há muitos desafios para a ordem global no século XXI. As mudanças climáticas, as pandemias e a direção cada vez mais nacionalista e protecionista do comércio e dos investimentos são três dos mais graves. Outra é a tensão entre os dois Estados mais poderosos da ordem global e a importância de evitar uma guerra entre eles (Allison 2017; Kissinger 2012). Tal guerra provavelmente faria o atual conflito na Ucrânia parecer pequeno em comparação.
A China e os Estados Unidos devem ser capazes de administrar suas diferenças e continuar a cooperar, apesar da queda nos níveis de confiança e interação de alto nível. (A última visita do presidente chinês Xi Jinping aos Estados Unidos ocorreu em 2017, enquanto o último presidente dos EUA a visitar a China foi o presidente Trump no mesmo ano). Mas eles podem precisar da ajuda de outros Estados para fazer isso. O Brasil talvez pudesse desempenhar uma função ao enfrentar esse desafio, porque é especialmente adequado para o papel de intermediário. Embora tenha desempenhado esse papel de maneira desajeitada –basta ver os comentários recentes de Lula sobre a guerra na Ucrânia, por exemplo– isso não significa que não possa desempenhá-lo com mais habilidade no futuro.
*Anthony W. Pereira é colunista da Interesse Nacional, diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University e professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Referências:
Graham Allison, Destined for War: A América e a China podem escapar da armadilha de Tucídides? (Boston: Mariner Books, 2017).
Henry Kissinger, On China (Londres: Penguin Books, 2012).
White House, US National Security Strategy (Washington DC: outubro de 2022).
É diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center da Florida International University, professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London e membro sênior da Canning House
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