As eleições americanas e o futuro do Oriente Médio
É necessário um compromisso genuíno de todas as partes envolvidas para romper o ciclo de violência e construir um caminho para a paz sustentável
As eleições nos Estados Unidos têm historicamente influenciado de maneira profunda a política externa do país, especialmente em regiões sensíveis como o Oriente Médio, e isso inclui Israel e o conflito com a Palestina. Os presidentes americanos, especialmente em seu primeiro mandato, frequentemente enfrentam desafios em desenvolver políticas eficazes nesse cenário complexo, muitas vezes levando a consequências duradouras.
No caso de Bill Clinton, seu primeiro mandato ficou marcado pela incapacidade de agir de maneira decisiva frente a crises humanitárias. Os genocídios em Ruanda e na Bósnia revelaram uma fraqueza em sua política externa. Apesar de Clinton ter alcançado avanços significativos nos Acordos de Oslo entre Israel e a Organização para Libertação da Palestina (OLP) em 1993, seu governo falhou em impedir atrocidades que poderiam ter sido mitigadas com uma resposta internacional mais rápida e coordenada.
Essa falta de ação sublinha uma das dificuldades enfrentadas por líderes recém-eleitos: equilibrar prioridades domésticas e internacionais e lidar com crises emergentes que testam a capacidade diplomática e militar dos EUA.
George W. Bush, por sua vez, assumiu a presidência em um momento de relativa calma global, mas seu governo foi radicalmente redefinido após os ataques de 11 de setembro de 2001. Sua resposta foi imediata e vigorosa, com a “Guerra ao Terror” sendo lançada, culminando na invasão do Afeganistão e, posteriormente, na controversa guerra no Iraque.
A invasão do Iraque é amplamente considerada um dos maiores erros estratégicos da política externa dos EUA no século XXI. A decisão de Bush de invadir o Iraque sob a alegação de que o país possuía armas de destruição em massa não apenas desestabilizou profundamente o Iraque, mas também gerou uma cascata de eventos que afetou o equilíbrio de poder em toda a região, resultando no fortalecimento de grupos extremistas e na criação de um vácuo de poder que alimentou conflitos subsequentes, como a ascensão do Estado Islâmico.
Esses exemplos ilustram como presidentes em seu primeiro mandato podem ser pressionados a tomar decisões precipitadas em contextos de crise, muitas vezes com consequências de longo prazo.
No caso de Israel, essa dinâmica também é evidente. Cada novo presidente dos EUA enfrenta o desafio de lidar com o status quo do conflito israelo-palestino, ao mesmo tempo que tenta implementar suas próprias abordagens para a região.
A política externa dos EUA em relação a Israel é, muitas vezes, um teste de fogo para novos presidentes. Israel é um aliado estratégico no Oriente Médio, e qualquer movimento em relação ao conflito com os palestinos pode ter repercussões globais. Assim, presidentes inexperientes ou sem uma base sólida de política externa, como Clinton e Bush em seus primeiros mandatos, podem tomar decisões que, mesmo que pareçam pragmáticas à primeira vista, acabam contribuindo para o agravamento da instabilidade na região.
Esse padrão pode se repetir com Kamala Harris, caso ela vença as eleições. Embora tenha experiência no governo como vice-presidente, há preocupações de que, como outros antes dela, Harris possa enfrentar dificuldades em lidar com a complexidade do conflito israelense-palestino, especialmente em um momento em que o cenário é agravado pela guerra em Gaza e pela crise humanitária subsequente.
Durante o debate recente, as declarações de Harris sobre Israel e Palestina foram vistas como diplomáticas, mas muitos críticos apontaram que faltaram profundidade e energia em sua abordagem. Ao reafirmar o compromisso dos Estados Unidos com a segurança de Israel e seu direito à autodefesa, ela manteve a linha tradicional da política externa americana. Além disso, ao defender o fim da guerra e o retorno dos reféns, bem como expressar apoio à solução de dois Estados, Harris sinalizou um desejo de paz e estabilidade na região.
No entanto, o que faltou em suas declarações foi a apresentação de estratégias concretas para avançar nessas direções. Não houve detalhamento de como ela planeja pressionar as partes envolvidas para retomar as negociações de paz, quais medidas diplomáticas ou econômicas poderiam ser implementadas para incentivar a cooperação, ou como lidar com as complexidades políticas internas de Israel e Palestina que frequentemente bloqueiam o progresso. Essa falta de especificidade gera preocupações sobre sua capacidade de lidar eficazmente com um dos conflitos mais intrincados e duradouros do mundo.
A situação é agravada pelo histórico recente da administração Biden no Oriente Médio. Antes dos eventos de 7 de outubro, quando o conflito em Gaza se intensificou, a administração adotou uma abordagem relativamente discreta na região. Essa estratégia permitiu que o governo de Benjamin Netanyahu avançasse com políticas controversas, como a expansão de assentamentos e possíveis anexações de territórios na Cisjordânia, além de manter o rígido bloqueio a Gaza que tem sido criticado internacionalmente por seus impactos humanitários.
A motivação por trás dessa postura aparentemente passiva foi o desejo de focar em outras prioridades estratégicas, notadamente a competição geopolítica com a China. A administração Biden buscou evitar que o conflito israelo-palestino consumisse recursos diplomáticos e políticos, esperando talvez que uma abordagem menos intervencionista pudesse reduzir as tensões ou, no mínimo, não exacerbar a situação. No entanto, essa falta de envolvimento ativo pode ter sido interpretada pelo governo israelense como um sinal de consentimento ou, pelo menos, de ausência de oposição significativa dos EUA às suas ações, permitindo o avanço de agendas que complicam ainda mais a possibilidade de uma solução pacífica.
Essa estratégia de evitar um envolvimento profundo no conflito não é nova na política externa americana, mas tem seus riscos. Ao não confrontar diretamente questões como a expansão de assentamentos ou violações de direitos humanos, os EUA podem estar contribuindo para a deterioração das condições no terreno. Além disso, ao priorizar outras áreas geopolíticas, a administração pode estar subestimando o potencial de instabilidade que o conflito israelo-palestino representa não apenas para a região, mas também para os interesses americanos no Oriente Médio e globalmente.
Se Harris assumir a presidência, ela herdará esses desafios. A expectativa é que ela precise definir uma política externa mais clara e proativa em relação ao Oriente Médio. Isso envolveria não apenas reafirmar o apoio à segurança de Israel, mas também demonstrar um compromisso genuíno com a busca de uma solução justa e viável para os palestinos. Significaria também estar disposta a usar a influência diplomática e política dos EUA para incentivar ambas as partes a retornarem à mesa de negociações e para desencorajar ações unilaterais que prejudiquem as perspectivas de paz.
Por outro lado, a abordagem de Trump em relação ao Oriente Médio foi marcada por ações que muitos analistas acreditam terem aumentado as tensões e a instabilidade na região.
Uma das políticas mais significativas foi o apoio incondicional a Israel. Ao reconhecer Jerusalém como a capital de Israel e transferir a embaixada dos Estados Unidos para lá, ele desafiou o consenso internacional e enfraqueceu a posição dos Estados Unidos como mediador neutro no conflito. Essa decisão foi amplamente criticada por ignorar as reivindicações palestinas sobre Jerusalém Oriental e por potencialmente inflamar tensões na região.
Além disso, o governo Trump apoiou a expansão de assentamentos israelenses nos territórios ocupados, o que é considerado ilegal pelo direito internacional e prejudicial para a solução de dois Estados. Ao apresentar o “Acordo do Século”, um plano de paz amplamente visto como favorável a Israel e rejeitado pelos palestinos, Trump afastou ainda mais as possibilidades de negociações significativas.
Outra ação controversa foi a retirada dos Estados Unidos do Plano de Ação Conjunto Global em 2018, conhecido como o acordo nuclear com o Irã. Este acordo, estabelecido em 2015, foi resultado de anos de negociações entre o Irã e as potências mundiais, incluindo os EUA, visando limitar o programa nuclear iraniano em troca do alívio de sanções econômicas. A saída unilateral de Trump do acordo e a reimposição de severas sanções econômicas ao Irã aumentaram as tensões entre os dois países e geraram preocupações sobre a proliferação nuclear. Essa decisão também isolou os Estados Unidos de seus aliados europeus, que optaram por permanecer no acordo.
Trump alega que conflitos como a invasão da Ucrânia pela Rússia ou o ataque do Hamas a Israel não teriam ocorrido sob sua liderança. No entanto, essas afirmações são questionáveis.
No caso da Ucrânia, durante seu mandato, Trump foi acusado de ter uma postura leniente em relação à Rússia e ao presidente Vladimir Putin, chegando a minimizar interferências russas nas eleições americanas de 2016. Sua administração também foi marcada por críticas à Otan e ameaças de retirar os EUA da aliança, o que poderia ter enfraquecido a dissuasão ocidental contra a agressão russa.
Quanto ao ataque do Hamas a Israel, é importante notar que as tensões entre israelenses e palestinos são profundas e complexas, resultantes de décadas de conflito. Portanto, é difícil sustentar que tais eventos não teriam ocorrido sob sua liderança, especialmente considerando que conflitos e escaladas ocorreram durante seu mandato.
A falta de uma posição firme e estratégias claras por parte dos candidatos dos EUA revela uma dependência problemática dos EUA em resolver o conflito. Historicamente, os Estados Unidos têm desempenhado um papel central como mediadores no processo de paz israelo-palestino. No entanto, quando os líderes americanos não apresentam planos coerentes ou se mostram parcializados, isso pode minar os esforços de paz e perpetuar o conflito. A ausência de propostas concretas e a falta de pressão sobre as partes envolvidas resultam em estagnação e frustração.
Enquanto isso, a manutenção do status quo por parte do governo israelense perpetua a violência e a instabilidade. Sem esforços genuínos para negociar e alcançar uma solução justa, as tensões continuam a escalar, resultando em ciclos recorrentes de confrontos e sofrimentos para ambos os lados. A falta de progressos também alimenta o extremismo, pois a ausência de perspectivas políticas pode levar grupos terroristas como o Hamas a ganhar apoio entre os palestinos desiludidos.
Para que haja um progresso real na questão israelo-palestina, é fundamental que Israel deseje mudanças substanciais em sua política em relação aos territórios ocupados e à autodeterminação palestina. A responsabilidade por iniciar esse processo não recai apenas sobre os líderes atuais, mas também sobre a oposição israelense, que precisa se mobilizar e exercer um papel mais ativo em pressionar por uma solução pacífica. Sem uma mudança interna em Israel, que inclua o reconhecimento da necessidade de um acordo justo para ambas as partes, o conflito continuará em um ciclo de violência e estagnação.
Além disso, a oposição precisa exigir a retomada de negociações de paz sérias, que incluam concessões mútuas e a implementação de medidas práticas para melhorar as condições de vida dos palestinos. Isso também envolve pressionar por uma mudança na política de assentamentos, que tem sido um dos maiores obstáculos para qualquer acordo de paz. O fortalecimento de uma oposição comprometida com a paz pode, por sua vez, inspirar mais segmentos da sociedade israelense a se posicionarem contra políticas que alimentam o conflito.
Os palestinos, por sua vez, também precisam estar dispostos a se engajar em negociações genuínas e a construir uma liderança unificada e comprometida com a paz. A fragmentação interna entre diferentes facções palestinas, como o Hamas e a Autoridade Palestina, tem enfraquecido a causa palestina e tornado as negociações mais difíceis. Uma liderança coesa que possa falar em nome de todos os palestinos será vital para qualquer progresso real.
Portanto, é necessário um compromisso genuíno de todas as partes envolvidas para romper o ciclo de violência e construir um caminho para a paz sustentável. Isso inclui tanto as lideranças políticas quanto as populações de Israel e Palestina, além da comunidade internacional. Somente com uma convergência de esforços – tanto internos quanto externos – será possível romper as barreiras que perpetuam o conflito e abrir espaço para uma solução justa, que ofereça segurança e autodeterminação para ambos os povos.
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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