Catar: por que criticamos violações de direitos humanos de alguns países e não de outros?
As agências de viagens e os conselhos de turismo desempenham um papel na formação de como o público vê um destino. Eles ajudam a criar e compartilhar uma imagem que valoriza o bom clima, o baixo custo, o entretenimento e as praias. Enquanto isso, o crime, a agitação política e a pobreza são todos escondidos. O turista médio acaba gastando mais tempo verificando as previsões do tempo do que pesquisando a situação política em possíveis locais de férias.
As agências de viagens e os conselhos de turismo desempenham um papel na formação de como o público vê um destino. Eles ajudam a criar e compartilhar uma imagem que valoriza o bom clima, o baixo custo, o entretenimento e as praias. Enquanto isso, o crime, a agitação política e a pobreza são todos escondidos. O turista médio acaba gastando mais tempo verificando as previsões do tempo do que pesquisando a situação política em possíveis locais de férias.
Por Ross Bennett-Cook*
Como anfitrião da Copa do Mundo, o Catar está atualmente no centro das atenções por anos de violações dos direitos humanos, principalmente no que diz respeito ao tratamento de trabalhadores migrantes e às leis sobre homossexualidade. Muitos questionaram como os torcedores de futebol podem visitar tal nação. Ativistas em toda a Europa pediram que as equipes não participassem, e muitos torcedores optaram pelo boicote.
Enquanto isso, a Turquia recebeu um número recorde de turistas em 2022, mas ficou em 48º lugar entre 49 países por suas leis de igualdade LGBTQ+. Mochilar pela Tailândia tornou-se um rito de passagem para os viajantes ocidentais, mas, de acordo com o ranking de direitos políticos e liberdades civis da Freedom House, o país pontua um pouco acima do Catar. E Dubai continua sendo o destino mais badalado para as estrelas de Love Island e influenciadores de redes sociais, apesar de a homossexualidade permanecer punível com prisão perpétua, açoitamento ou até a morte.
Desta forma, alguns destinos parecem escapar do escrutínio de suas violações de direitos humanos, enquanto outros são duramente criticados. Como o blogueiro de viagens Tom O’Hara explicou em 2016: “Quando mencionei que estava indo para o Uzbequistão nas férias de verão, as pessoas me questionaram sobre as implicações éticas de viajar para um país governado por uma ditadura tão notoriamente desagradável. Curiosamente, as mesmas perguntas não surgiram até agora neste ano, quando contei às pessoas que estou viajando para Cuba”.
Países como Cuba têm investido tempo e dinheiro para promover um “discurso turístico”. Isto significa, com a ajuda das agências de viagens, divulgar uma imagem positiva do país como destino de férias. Em um lugar como o Uzbequistão, um destino significativamente menos popular, não há imagens tão positivas associadas. Mas, no ranking da Freedom House, o Uzbequistão está apenas uma posição acima de Cuba.
Os governos injetam milhões em campanhas que projetam uma imagem positiva no exterior. Em 2010, o conselho de turismo de Tel Aviv investiu US$ 90 milhões para promover a cidade como um destino gay de férias internacionais. Alguns críticos argumentaram que esta é uma técnica de pinkwashing, usar as atitudes liberais de Israel em relação à sexualidade para desviar a atenção da opressão contínua dos palestinos.
As agências de viagens e os conselhos de turismo desempenham um papel na formação de como o público vê um destino. Eles ajudam a criar e compartilhar uma imagem que valoriza o bom clima, o baixo custo, o entretenimento e as praias. Enquanto isso, o crime, a agitação política e a pobreza são todos escondidos. O turista médio acaba gastando mais tempo verificando as previsões do tempo do que pesquisando a situação política em possíveis locais de férias.
A pesquisadora de turismo Alicia Vega explorou guias de viagem espanhóis das décadas de 1950 e 1960 para entender como eles abordavam o regime autocrático franquista do país na época. Ela descobriu que a maioria não mencionou a ditadura. Os que o faziam pisavam em ovos, usando eufemismos como se referir à “futura monarquia” e nunca ao “ditador”. Muitos europeus do norte que visitaram a Espanha franquista não sabiam que o país estava sob uma ditadura.
Hoje, os turistas podem facilmente pesquisar o histórico político de um país na internet, mas, ao procurar uma pausa relaxante, isso não é algo que muitos consideram. De acordo com uma pesquisa de 2017, o fator mais importante para a geração millennial ao escolher um destino era como ele apareceria nas fotos no Instagram.
O guia tradicional foi substituído pelas redes sociais. Da Indonésia à Arábia Saudita, as nações aproveitaram o poder dessa nova forma de criação de imagem, convidando influenciadores populares em viagens com todas as despesas pagas para reforçar sua imagem online.
Olhar seletivo
Muitas pessoas estão cientes de sweatshops sendo usadas para moda rápida ou da situação dos trabalhadores de fábricas de iPhones na China, mas ainda assim compram esses produtos. A indústria do turismo não é diferente. Como hóspedes em visitas curtas, muitas vezes usamos a natureza temporária de nossas férias como uma desculpa para evitar as realidades negativas de um destino. Afinal, o que posso fazer sobre os direitos das mulheres no Egito, se estou visitando apenas por duas semanas?
Pode-se argumentar que a responsabilidade recai sobre as empresas de viagens. Se a Fifa está enfrentando uma reação negativa por sediar a Copa do Mundo no Catar, então a British Airways ou companhias de turismo como a Thomas Cook deveriam ser criticadas por lucrar com férias em Barbados, há muito considerado um dos lugares mais perigosos do mundo para ser gay.
A falta de interesse pela situação política do país pode ser atribuída à indiferença que, segundo os estereótipos, caracteriza o turista típico. As férias giram em torno do prazer, um turista é (compreensivelmente) completamente autocentrado quando está de férias. Eles tendem a estar cercados por outros turistas e facilitam laços não representativos do país anfitrião, tornando fácil ver esses lugares como o paraíso.
Algumas nações até projetam sua indústria do turismo para acomodar os turistas em resorts de enclave específicos, longe das realidades da vida local. As normas culturais ocidentais prevalecem na cidade turística egípcia de Sharm el Sheikh, e os turistas podem sentir que poderiam estar na Itália ou na Espanha. Fora do resort, a oposição política é praticamente inexistente, as expressões de dissidência podem levar à prisão e as liberdades civis, liberdade de imprensa e liberdade de reunião são fortemente restritas.
Muitos destinos com problemas de direitos humanos ou sob regimes autoritários são incrivelmente bonitos e abrigam pessoas incrivelmente hospitaleiras que não podem ser culpadas pelas ações de seus governos. Mas como consumidores (e turistas são consumidores), podemos fazer mais para pesquisar cuidadosamente nossos destinos e garantir que o dinheiro que estamos gastando seja usado localmente e não por ditaduras perigosas.
*Ross Bennett-Cook é professor visitante e doutorando na Escola de Arquitetura e Cidades da University of Westminster.
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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