Cenas de um ‘fiasco’ anunciado: o caso de Itaipu
Renegociação de termos de compra de energia pelo governo não passou por devida discussão, atropelou o Itamaraty e aceitou preços que favorecem mais ao Paraguai do que ao Brasil. País precisa frear acordo e repensar os termos acertados
No dia 07 de maio de 2024, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, anunciou, durante uma viagem surpresa a Assunção, no Paraguai, o acordo brasileiro-paraguaio sobre a renegociação dos termos financeiros da energia produzida por Itaipu Binacional, em especial do Anexo C do Tratado de Itaipu (de 1973).
Passados alguns dias, as primeiras análises sugeriam que o acordo seria “terrível” e os termos “indecentes” para o Brasil. O presente artigo objetiva apresentar uma breve síntese das principais críticas ao acordo.
O sigilo das negociações e o timing do acordo
Itaipu é uma enorme represa binacional que gera uma imensa quantidade de energia limpa e renovável. Em 2023, produziu 83.879 GWh, o que corresponde a 8,6% do mercado elétrico brasileiro e 86,4% da energia consumida pela sociedade paraguaia. Ademais, essa barragem é uma obra complexa de engenharia e de arquitetura político-econômica feita pelo Brasil e pelo Paraguai. Ambos sócios equânimes da hidrelétrica, em que pesem as suas assimetrias de poder.
A despeito de sua importância e de seus reflexos socioeconômicos para o Brasil e para a região, as negociações em torno desse acordo quase passaram incólumes pelos noticiários brasileiros. Aliás, o anúncio foi feito em meio à comoção pela terrível tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul. Impediu, assim, uma análise dos termos do acordo e um necessário debate democrático dos stakeholders do mercado elétrico brasileiro.
Atores e as dinâmicas das negociações
Desde o início dos debates em torno da repactuação do Anexo C, o Itamaraty estava à frente das negociações. Ao Ministério de Minas e Energia (MME), à Assessoria para Assuntos Internacionais do Palácio do Planalto, ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e à Itaipu Margem Esquerda (margem administrada pelo Brasil), caberia o papel de fornecer elementos e dados para os diplomatas brasileiros, e em última instância para o presidente Lula, acertarem os termos da negociação.
No entanto, diversos grupos políticos, como Partido dos Trabalhadores, capitaneado pela deputada Gleisi Hoffmann, e parte da base aliada do atual governo defendem um acordo com tarifas mais altas e flexíveis. Com isso, Itaipu poderia realizar investimentos fora da sua área de influência, como o investimento de R$ 1,3 bilhão em obras de infraestrutura em Belém, no Pará.
Ademais, os gastos de Itaipu possuem regras mais “flexíveis”. Os investimentos não passam pelas agências de controle estatal, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria Geral da União (CGU), em virtude da sua natureza jurídica internacional. As discussões bilaterais sobre os padrões de governança corporativa da entidade binacional estão “paradas” em alguma gaveta em Brasília-DF e em Assunção. Aparentemente, não há vontade política de se fazê-lo.
Assim, a visita surpresa do ministro e a forma midiática do anúncio do acordo indicam duas coisas: O ministro de Minas Energia, em busca de um protagonismo político individual, atropelou as instituições do Estado. Escancarou a fragilidade do Ministério de Relações Exteriores, o qual foi “atropelado” nas negociações. Teria o presidente Lula dado anuência a essa ação espetaculosa à margem da Casa de Rio Branco? Não se sabe a resposta, mas é improvável que o Palácio do Planalto não soubesse de tal ação.
Termos do Acordo
Outra consequência indesejável da ação espalhafatosa do ministro Silveira é a perda da posição dominante que o Brasil possuía nas negociações. Afinal, o Anexo C de 1973 previa a comercialização pelo preço de custo da energia gerada por Itaipu. Segundo estudiosos, esse valor seria algo entre US$ 10 a 12 /kW mês. Qualquer tribunal arbitral internacional daria razão ao pleito brasileiro.
Como sinal de boa vontade, o governo Lula aceitou pagar uma tarifa provisória de US$ 17,66/kW mês, isto é, acima dos custos previstos no tratado e dos valores do mercado livre de energia. Assim, não é verdade que a tarifa acordada de US$ 19,28 até 2026 seja benéfica ao consumidor brasileiro.
Ademais, o ministro anunciou que o Governo Federal subsidiará a eletricidade e não repassará o aumento para os clientes finais. Esse subsídio fere, de maneira evidente, as normas internacionais de comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Com isso, todo o setor industrial brasileiro poderá ser questionado no Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC. O país poderá ser alvo de sanções econômico-comerciais e de medidas protecionistas.
Na ocasião, Silveira anunciou a promessa paraguaia de que, a partir de 2027, a tarifa será de até US$12,00/kW mês. Essa energia seria vendida diretamente ao mercado livre de energia do Brasil.
Contudo, existem alguns problemas. A energia fornecida por Itaipu está acima do valor médio praticado pelo mercado livre de energia. Ao permitir a venda, a operação será uma importação de energia, sobre a qual incidem tributos como Imposto de Importação (II) e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS). Portanto, a energia chegará ao mercado livre muito acima dos valores prometidos.
Ademais, a história demonstrou que o Paraguai nunca cumpriu as promessas relativas às tarifas. Ao acompanhar os debates na imprensa paraguaia, representantes das mais diversas matizes ideológicas defendem a não ratificação do acordo do valor da energia em torno US$ 12,00/kW mês. Não foram apresentadas as garantias paraguaias do cumprimento do acordado. As autoridades brasileiras continuaram a crer na ideia de que “la garantia soy yo”. A questão certamente voltará à baila em 2027. Não obstante, o Paraguai estará em posição privilegiada nos debates.
Obras complementares
Em paralelo às discussões sobre Itaipu, ganhou força o debate da construção de um gasoduto de Vaca Muerta, na Argentina, até o Mato Grosso do Sul, o qual passaria por território paraguaio. Esse projeto possui algumas questões a serem clarificadas.
Essa opção visa privilegiar o Paraguai, o qual seria intermediário da venda do gás da Argentina ao Brasil. O Estado brasileiro daria todas as garantias de mercado e o financiamento do empreendimento.
No entanto, existem opções mercadológicas mais viáveis, tais como a interconexão do gasoduto de Vaca Muerta no Rio Grande do Sul, sem passar pelo território paraguaio. Outra opção é a utilização comercial do gás da Bacia de Santos, em São Paulo. Por fim, fazer cumprir o acordo do gasoduto Brasil – Bolívia. O governo boliviano, a despeito de receber o valor integral da venda do gás, não entrega o acordado. Além disso, estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do MME indicam a possibilidade de ampliação da produção de Itaipu pelo uso de novas tecnologias e materiais, as quais ampliariam a eficácia energética, aumentariam a oferta e reduziriam os valores da energia da represa binacional.
Não se resolveu também a questão de obras previstas no Tratado de 1973, tais como as eclusas em Itaipu, as quais permitiram a interconexão entre a hidrovia Tietê-Paraná com o restante da Bacia do Rio da Prata. Esse tema certamente voltará à baila futuramente.
O que fazer então?
Cabe ao Parlamento, em especial ao Senado brasileiro, e ao Supremo Tribunal Federal (STF) colocar freios aos arroubos do Executivo, em especial do ministro Silveira. Os impactos de um mau acordo terão efeitos negativos duradouros para toda sociedade brasileira.
É necessário não ratificar e rediscutir os termos do pacto. Ademais, deve-se construir uma agenda bilateral positiva. Afinal, o Acordo de Itaipu deve ser benéfico para ambas as partes, e não apenas ao Paraguai.
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