Daniel Buarque: O apelo moral do Brasil na ONU e a realpolitik
Discurso do chanceler no Conselho de Segurança revela visão ingênua da geopolítica e tenta mobilizar potências interessadas em poder apenas com argumentos sobre a guerra
Discurso do chanceler no Conselho de Segurança revela visão ingênua da geopolítica e tenta mobilizar potências interessadas em poder apenas com argumentos sobre a guerra
Por Daniel Buarque*
Na despedida brasileira da Presidência do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), o chanceler Mauro Vieira fez um discurso duro e cheio de apelos morais pela falta de ação do órgão em relação à guerra entre Israel e o Hamas. Vieira disse que o conselho tem “repetida e vergonhosamente fracassado” em sua resposta ao conflito e atacou o que chamou de incapacidade fundamental de agir. “Quantas vidas mais serão perdidas até que nós finalmente passemos do discurso para a ação?”, perguntou.
O apelo de Vieira teve uma alta carga emocional e foi tratado por muitos no Brasil como um posicionamento importante do país, que deixa a liderança do órgão com a cabeça erguida e sentimento de ter atuado da melhor forma possível. O discurso serve para mostrar que o Brasil está do lado da paz e do bem, e que trabalhou o quanto pôde durante o mês em que presidiu o conselho a fim de chegar a uma solução humanitária para a guerra.
A posição do chanceler e do Brasil, entretanto, também revela uma interpretação um tanto ingênua dos jogos de poder envolvendo as grandes potências e seus interesses em meio a duas guerras que convulsionam a política global. Ajuda ainda a explicar parte do fracasso do Brasil em se tornar uma dessas potências.
Na realpolitik, o que importa é o poder, e não a moral.
Por mais que a teoria das relações internacionais abrigue diversas discussões importantes sobre o funcionamento e organização do mundo, o realismo ainda é a grande escola que pauta as ações das grandes potências. Mesmo que haja argumentos favoráveis a interpretações que valorizem a importância das instituições, da economia, das ideias, da moral e dos costumes, os países com mais poder querem é manter o status quo e proteger seus interesses.
É claro que discursos e apelos como os do Brasil (ou dos Estados Unidos no caso da guerra na Ucrânia) são usados como justificativa para mobilização da opinião pública e de grupos em uma ou outra direção. Mas, no fundo, muitas vezes são só uma fachada na tentativa de cada país avançar em seus interesses geopolíticos e de poder.
Isso é o Conselho de Segurança da ONU, e sempre foi assim.
O apelo do Brasil é condizente com a história das suas relações exteriores. O país sempre se colocou como um ator que busca o consenso, a negociação pacífica e o fim dos conflitos. Isso justifica até mesmo o fato de regularmente não tomar lados em disputas, o que o faz ser visto como um país que está sempre em cima do muro.
Isso não é necessariamente um problema, e várias potências médias conseguem consolidar uma marca no mundo como negociadoras em busca da paz — caso da Noruega. A questão é que, na hora em que as potências estão reunidas para discutir grandes questões globais, como no CSNU, o que importa para elas são seus interesses, e não a moral. Cada potência busca apenas garantir o máximo de segurança para si e para seus aliados, tentando manter o máximo de poder possível.
É verdade, como acusou Vieira, que isso gera imobilismo do Conselho de Segurança. Mas talvez o sistema não tenha sido feito para funcionar. Se fosse, não daria poder de veto a antagonistas que têm incentivos para sempre impedir a aprovação do que o outro quer.
Da mesma forma, o apelo do Brasil ao multilateralismo também parece perdido. Nenhum dos membros permanentes do conselho quer diluir o seu próprio poder dando espaço a outros atores com força internacional. Por mais que haja argumentos em defesa dessa abertura, EUA, China, Rússia, Reino Unido e França, no fundo, não ligam para multilateralismo a ponto de se incomodar muito com as limitações dele apontadas pelo Brasil.
Sem dúvidas, a diplomacia brasileira reconhece esse domínio do realismo nas decisões do conselho. O apelo contra a inação é uma forma de o país deixar registrada a sua marca na discussão sobre a guerra em Gaza, acreditando na importância do registro histórico de um posicionamento a favor da paz. É uma forma de projetar positivamente o país que deixa a Presidência do CSNU sem ter conseguido avançar de forma real para a resolução do conflito em Gaza.
Não há nada de errado nisso, mas a história mostra que é difícil ganhar espaço na política global dessa forma. Se quiser realmente se tornar uma das grandes potências, em algum momento o Brasil vai precisar aprender a jogar como os grandes e apelar não apenas para argumentos morais, mas para o jogo de interesses e de poder da realpolitik.
*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador do pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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