13 janeiro 2023

É possível afastar o bolsonarismo das Forças Armadas no Brasil?

Mesmo após a saída de Bolsonaro do poder, a politização das forças de segurança continuará existindo. Para professor de relações internacionais, “desbolsonarizar” as forças de segurança não é a questão central, e o fundamental é desmilitarizar a cidadania brasileira.

Mesmo após a saída de Bolsonaro do poder, a politização das forças de segurança continuará existindo. Para professor de relações internacionais, “desbolsonarizar” as forças de segurança não é a questão central, e o fundamental é desmilitarizar a cidadania brasileira.

Jair Bolsonaro preside promoção de oficiais do Exército em Brasília (Foto: Clauber Cleber Caetano / Estevam Costa / PR)

Por Thiago Rodrigues*

A presença dos militares na vida política brasileira é uma constante desde o século XIX, com uma longa lista de intervenções militares e golpes. Os períodos democráticos foram poucos e breves. O atual teve início com a promulgação da Constituição de 1988. No entanto, essas três décadas foram testemunhas de crises institucionais que se aprofundaram na última década.

Os primeiros sinais de uma grave fratura política e ideológica no Brasil foram percebidos nos protestos de 2013, que logo foram instrumentalizados pela oposição conservadora contra o governo de Dilma Rousseff. Depois veio o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, em 2016, e a caça às bruxas da operação anticorrupção Lava Jato –culminada, em 2018, com a prisão do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva– seguida do governo de Jair Bolsonaro entre 2019 e 2022.

Nesta década, os altos escalões das Forças Armadas e dos clubes militares voltaram a intervir no cenário político nacional, emitindo opiniões e pressionando a opinião pública por meio de declarações de apoio a ações anticorrupção e protestos nacionalistas e ultraconservadores .

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Nesse cenário, surgiu a figura de Bolsonaro, ex-capitão do Exército Brasileiro que se demitiu da corporação em 1988 após se envolver em episódios de insubordinação contra o novo regime democrático. De imediato iniciou a carreira política como deputado federal, sendo reeleito ininterruptamente até lançar sua candidatura presidencial em 2018.

De parlamentar exótico a flagelo do partido de Lula

Por duas décadas, Bolsonaro foi considerado um parlamentar radical e exótico que vociferava princípios de extrema-direita. No entanto, ganhou projeção como o grande opositor dos governos do Partido dos Trabalhadores. Mais tarde, o ex-soldado sem prestígio no quartel passou a ser ouvido e acolhido nas academias militares, tanto das Forças Armadas quanto da Polícia Militar.

Bolsonaro tornou-se a figura representativa dos valores da extrema-direita, incorporando e adotando o lema do Integralismo, movimento de massas brasileiro da década de 1930 inspirado no fascismo italiano: “Deus, Pátria e Família”.

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Ao chegar ao poder em 2019, Bolsonaro abriu as portas do Estado para seus aliados militares. Seu grupo próximo de conselheiros incluía oficiais militares de alto escalão responsáveis ​​pela comunicação, segurança institucional e inteligência do governo. Os ministérios, órgãos estatais e empresas estatais foram povoados pelos militares. Em 2020, o número de militares em funções civis atingiu a cifra de 6.153 pessoas, número superior ao registrado durante a ditadura civil-militar.

É justamente isso que a cientista política Polina Beliakova chama de “militarização”, ou seja, quando os militares ou ex-militares ocupam funções de caráter civil, como a gestão de empresas ou a gestão do sistema público de saúde.

O exemplo mais importante da militarização do Estado no governo Bolsonaro ocorreu justamente no campo da saúde. No auge da pandemia de Covid-19, o Ministério da Saúde era ocupado por um general do Exército da ativa, Eduardo Pazuello, que não tinha formação como profissional nessa área nem experiência anterior com o sistema público de saúde. O Brasil tem sido um dos países mais atingidos pela pandemia, com 695 mil mortes até o momento.

Posse do general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde, em 2020 (Foto: Erasmo Salomão / MS, CC BY)

A ligação entre o bolsonarismo e os militares

Em 2022, durante a campanha presidencial, os militares de todo o país apoiaram abertamente Bolsonaro, apesar da proibição legal de manifestações políticas de militares da ativa. Muitos militares de Bolsonaro disputaram cargos e saíram vitoriosos, como Eduardo Pazuello (deputado federal) e o general Hamilton Mourão, vice-presidente de Bolsonaro, eleito senador. Em outubro de 2022, policiais militares da Polícia Rodoviária Federal agiram para dificultar ou impedir que eleitores de áreas favoráveis ​​a Lula chegassem às seções eleitorais.

Após a vitória de Lula, o bolsonarismo radical se mobilizou em nível nacional para contestar o resultado das urnas. O ponto de convergência dos rebeldes foi, mais uma vez, as Forças Armadas. Acampamentos proliferaram em frente a quartéis exigindo uma “intervenção militar” que impedisse a ascensão de Lula. Os assessores militares e civis de Bolsonaro continuaram a operar um sistema de fake news veiculadas pelas redes sociais com o desafio de radicalizar ainda mais seus seguidores.

Caminhoneiros param tráfego em rodovia em protesto em apoio a Bolsonaro em 2022 (Foto: Wikimedia Commons / HVL, CC BY-SA)

O decreto de Lula e a mudança de postura do Exército

O resultado desse processo foi a invasão e depredação da sede dos poderes constitucionais em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023. Imagens de policiais militares permitindo passivamente a entrada e destruição de bens públicos e de militares conversando pacificamente com insurgentes logo circularam.

A atitude das forças de segurança só mudou quando Lula decretou intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal (DF), que levou à renúncia do secretário de segurança (ex-ministro da Justiça de Bolsonaro) e à suspensão temporária das funções do governador do DF.

‘Não há exemplos no mundo contemporâneo de democracias estáveis ​​que não tenham estabelecido um sistema robusto de controle civil das forças de segurança do Estado’

Não há exemplos no mundo contemporâneo de democracias estáveis ​​que não tenham estabelecido um sistema robusto de controle civil das forças de segurança do Estado. Esta questão é chave no sistema político americano e nas democracias europeias, mas também é um ponto extremamente fraco em quase todo o mundo. Na América Latina, as histórias de construção nacional foram marcadas por múltiplas intervenções militares e períodos autoritários apoiados ou liderados por forças de segurança.

Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos promoveram a tendência intervencionista dos militares latino-americanos em nome da luta contra o comunismo ou qualquer alternativa autonomista ao poder americano. Terminada a Guerra Fria, o intervencionismo militar continuou ativo sob o disfarce de combate ao crime organizado.

‘No Brasil, os militares nunca aceitaram plenamente o marco constitucional do controle civil das Forças Armadas’

No Brasil, os militares nunca abandonaram a crença de que são o poder nacional moderador e, portanto, nunca aceitaram plenamente o marco constitucional do controle civil das Forças Armadas. A criação do Ministério da Defesa, em 1999, pouco alterou essa crença, como se pode constatar na atualidade.

A volta de Lula à presidência não deu sinais de disposição para enfrentar o “poder militar” brasileiro. Embora tenha começado uma operação de demissão em massa de militares de cargos civis, não está clara a intenção de atuar junto às Forças Armadas para submetê-los à Constituição. É indicativo que, nos meses de transição, Lula tenha criado grupos de trabalho para todas as áreas (Agricultura, Economia, Educação etc.), exceto Defesa. Também é significativo que o ministro da Defesa indicado seja José Múcio, civil sem experiência na matéria e com longa carreira política conservadora.

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A politização das forças de segurança

Diante de um cenário tão complexo, seria possível pensar em uma “desbolsonarização” das forças de segurança (Forças Armadas e policiais)? Se Bolsonaro é o nome atual que molda uma tradição intervencionista, o problema é muito mais profundo, pois se trata de uma questão estrutural e espinhal das forças de segurança brasileiras. Bolsonaro como figura política pode desaparecer, mas a politização das forças de segurança continuará existindo.

‘Bolsonaro como figura política pode desaparecer, mas a politização das forças de segurança continuará existindo’

O problema subjacente é o tipo de segurança que os cidadãos brasileiros desejam. O modelo atual é de confronto e mão pesada. As populações marginalizadas são controladas pelas forças policiais – e às vezes pelas Forças Armadas – a partir de uma lógica militar, ou seja, de confronto, assassinato e ocupação territorial.

Diante do crescimento das desigualdades sociais, parte da cidadania brasileira elege a violência como modelo de ordem social. Isso, aliado à tradição intervencionista das Forças Armadas, produz um cenário difícil de mudar.

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O Brasil não passou por períodos de avaliação crítica de seu passado. Não houve exercício de memória e reparação histórica no país. Não há museus ou memoriais sobre os anos ditatoriais e ainda há muitas ruas, praças e estradas com nomes de generais e ditadores.

Enquanto este exercício não for feito, não será possível aos cidadãos conhecer os efeitos de soluções repressivas para problemas sociais e económicos complexos. Continuará a haver uma memória induzida de que os militares são a solução para todos os tipos de problemas muito além de suas funções próprias de defender a pátria contra ameaças estrangeiras.

Até agora, as forças social-democratas que assumiram o controle do país não enfrentaram esse problema. O medo dos militares continua vivo e as forças de segurança continuam a acreditar no seu papel excecional de proteger o Estado de uma democracia que lhes parece frágil e ineficaz. “Desbolsonarizar” as forças de segurança não é a questão central. O fundamental é desmilitarizar a cidadania brasileira.


Thiago Rodrigues é professor de relações internacionais na Universidade Federal Fluminense


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em espanhol.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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