17 setembro 2025

Entre a diplomacia e a demagogia – Os riscos do discurso presidencial brasileiro

Ao transformar os Brics em palco de uma denúncia existencial contra a ordem vigente, mas empregar uma retórica divisiva quando trata de Gaza, Lula oferece ao mundo um projeto simultaneamente sedutor, impreciso e perigoso. O risco é que o Brasil reforce sua imagem como potência discursiva, mas incapaz de converter prestígio simbólico em influência efetiva. Denunciar injustiças é, sem dúvida, um imperativo moral, mas não se pode abandonar o campo da diplomacia e adentrar perigosamente no território da demagogia

Entrevista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Jornal da Band (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Nas últimas semanas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a atrair os holofotes da política internacional com declarações que, embora embaladas por uma retórica de justiça global, suscitam questionamentos relevantes sobre os limites da linguagem diplomática e o risco da politização seletiva de causas humanitárias. 

Ao discursar na Cúpula Virtual dos Brics, em 8 de setembro, Lula reiterou um repertório já conhecido, mas desta vez com tom ainda mais categórico. A ordem internacional fundada em 1945, com suas instituições, regras e compromissos multilaterais, foi apresentada como um edifício em ruínas.

‘Segundo o presidente, assistimos à “erosão completa do sistema multilateral”’

Segundo o presidente, assistimos à “erosão completa do sistema multilateral” e ao “sepultamento formal” dos princípios basilares do comércio internacional, como a cláusula da Nação Mais Favorecida e o Tratamento Nacional. Sanções econômicas unilaterais, chantagens tarifárias e a estagnação da OMC foram apontadas como sintomas de um sistema manipulado por potências ocidentais em declínio, incapazes de sustentar a legitimidade do próprio discurso liberal que outrora propagaram.

Lula foi além da crítica técnica: sua fala assumiu contornos quase fundacionais, sugerindo que os Brics não apenas representam um polo alternativo, mas uma espécie de refundação moral da ordem internacional. “Os Brics são nosso plano de futuro”, afirmou, em uma tentativa explícita de reconfigurar o campo de legitimidade global. 

‘Essa inflexão discursiva busca não apenas reposicionar o Brasil, mas inscrevê-lo como um dos principais arquitetos da nova governança global centrada no Sul Global’

Essa inflexão discursiva marca uma transição simbólica relevante: da denúncia à proposição, do ressentimento pós-colonial à autodeclaração de protagonismo normativo. Trata-se de uma estratégia ambiciosa, que busca não apenas reposicionar o Brasil, mas inscrevê-lo como um dos principais arquitetos da nova governança global centrada no Sul Global, na multipolaridade e na justiça redistributiva, ambiental, econômica e política.

Contudo, o gesto carrega tensões estruturais que não podem ser ignoradas.

Em primeiro lugar, o próprio conceito de “ordem internacional alternativa” permanece vago e, por vezes, contraditório. Ao mesmo tempo em que o discurso de Lula condena o uso seletivo das normas internacionais pelas potências ocidentais, pouco se diz sobre os limites e contradições internas do bloco dos Brics, onde convivem regimes autoritários, interesses estratégicos conflitantes e visões de mundo divergentes. 

Além disso, a proposta de uma governança verde e inclusiva colide com as trajetórias de desenvolvimento intensivo em carbono de diversos membros do grupo, bem como com a ausência de mecanismos institucionais robustos que sustentem as ambições declaradas.

‘A retórica de justiça global frequentemente escorrega para uma gramática de antagonismos morais, entre Norte e Sul, que, embora mobilizadora, tende a obscurecer os matizes da diplomacia real’

Em segundo lugar, a retórica de justiça global frequentemente escorrega para uma gramática de antagonismos morais, entre Norte e Sul, entre opressores e oprimidos, entre civilização e colonialismo, que, embora mobilizadora, tende a obscurecer os matizes da diplomacia real. 

Essa abordagem pode gerar ganhos simbólicos junto a audiências específicas, sobretudo no âmbito do Sul Global e de setores progressistas da opinião pública internacional. No entanto, ela também fragiliza a capacidade de construção de pontes, dilui a coerência dos princípios universais defendidos e limita a eficácia do Brasil como interlocutor de múltiplas partes.

Ao transformar os Brics em palco de uma denúncia existencial contra a ordem vigente, Lula oferece ao mundo um projeto simultaneamente sedutor e impreciso. O desafio, agora, é transformar essa retórica em propostas tangíveis, articuladas com os mecanismos reais de governança, e sustentadas por coerência interna e responsabilidade internacional. 

O risco, caso contrário, é que o Brasil reforce sua imagem como potência discursiva, mas incapaz de converter prestígio simbólico em influência efetiva, algo que, ironicamente, reproduz os dilemas do multilateralismo que tanto se pretende superar.

‘A diplomacia, para ser eficaz, exige clareza de propósitos, mas também prudência nos meios e sensibilidade às implicações simbólicas das palavras’

Esse esforço de reposicionamento, contudo, encontra obstáculos não apenas geopolíticos, mas também discursivos. A diplomacia, para ser eficaz, exige clareza de propósitos, mas também prudência nos meios e sensibilidade às implicações simbólicas das palavras, sobretudo quando estas partem de um chefe de Estado em nome de uma nação diversa e plural.

É nesse ponto que as recentes falas do presidente Lula sobre o conflito entre Israel e o Hamas revelam uma fratura entre sua ambição diplomática de protagonismo ético e sua prática política, marcada por inflexões retóricas que muitas vezes produzem mais ruído do que pontes.

Em entrevista concedida ao SBT no início de setembro, Lula voltou a classificar a ofensiva israelense em Gaza como um “genocídio contra mulheres e crianças”, reiterando a denúncia que já havia apresentado em fóruns internacionais. Contudo, desta vez foi além: afirmou que a comunidade judaica brasileira deveria “mandar uma carta ao Netanyahu” condenando as ações do governo israelense. 

‘Declaração sobre Israel deslocou o eixo da crítica legítima à condução da guerra por parte de um governo estrangeiro para o campo problemático da responsabilização identitária de um grupo nacional minoritário’

A declaração, ainda que aparentemente orientada por um impulso humanitário, deslocou o eixo da crítica legítima à condução da guerra por parte de um governo estrangeiro para o campo problemático da responsabilização identitária de um grupo nacional minoritário, uma manobra que ressoa com ecos perigosos da história política mundial.

Ao interpelar diretamente a comunidade judaica brasileira como corresponsável moral, ou, ao menos, como devedora de uma tomada pública de posição, Lula reeditou, ainda que de forma talvez não intencional, a lógica da “culpa por associação”, frequentemente mobilizada por regimes autoritários contra minorias diaspóricas. 

A ideia de que judeus brasileiros devam responder pelos atos de um governo estrangeiro equivale, na prática, a uma forma de interpelá-los como corpo único, coeso, homogêneo, apagando sua pluralidade interna e sua cidadania brasileira. Pior: reforça a retórica, há muito presente no discurso antissemita, de que os judeus seriam sempre antes leais a Israel do que ao país em que vivem.

O efeito foi imediato e previsível. Entidades como a Confederação Israelita do Brasil (Conib) e diversas federações regionais repudiaram a declaração, apontando não apenas sua impropriedade factual e política, mas também o risco de aumento da hostilidade contra judeus em um contexto de crescente intolerância. 

‘O gesto presidencial deslocou a política externa da esfera do posicionamento institucional para a da interpelação comunitária, o que rompe com a tradição diplomática brasileira’

A fala, além disso, minou os esforços anteriores do Itamaraty de se equilibrar entre a denúncia humanitária do sofrimento palestino e o respeito às sensibilidades das comunidades envolvidas, dentro e fora do Brasil. O gesto presidencial deslocou a política externa da esfera do posicionamento institucional para a da interpelação comunitária, gesto que rompe com a tradição diplomática brasileira de não projetar conflitos externos sobre o tecido social doméstico.

Ainda mais grave é a contradição performativa que se instala: um presidente que se propõe a liderar a luta global contra o ódio, a xenofobia e a intolerância, acaba por lançar suspeição sobre uma comunidade religiosa com base na identidade. 

Ao fazer isso, Lula enfraquece seu próprio discurso de universalismo ético e de liderança moral do Sul Global. Denunciar abusos em Gaza não exige convocar brasileiros a responder por atos do governo israelense. Exige, sim, coerência, precisão conceitual e compromisso com o direito internacional, não com narrativas que alimentam dicotomias identitárias internas.

‘Essa fratura entre intenção e prática revela os limites de uma diplomacia moldada mais pela lógica da polarização do que pela busca de convergência’

Essa fratura entre intenção e prática, entre a ambição de liderar uma agenda global de justiça e a adoção de expedientes retóricos divisivos, revela os limites de uma diplomacia moldada mais pela lógica da polarização do que pela busca de convergência. A retórica moralizante pode gerar ganhos simbólicos imediatos, mas, se desconectada do princípio da responsabilidade discursiva, compromete a credibilidade internacional do país e, internamente, ameaça o próprio ideal de convivência democrática que Lula diz defender.

A crítica à política israelense pode, e deve, ser feita dentro dos marcos do direito internacional humanitário. O uso desproporcional da força, o bloqueio à ajuda humanitária, os bombardeios indiscriminados: tudo isso precisa ser investigado, denunciado e julgado. O Brasil, inclusive, teve papel ativo no apoio à ação movida pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça. 

No entanto, ao invocar a comunidade judaica brasileira como responsável por cobrar uma postura do governo de Israel, Lula recorre a uma lógica perigosamente identitária que contraria os princípios democráticos de representação plural. Essa inversão é especialmente grave em tempos de aumento do antissemitismo global, pois acaba por reforçar uma ideia de lealdade dual que há muito serve de munição para discursos xenófobos.

A retórica da condenação moral pode, é verdade, gerar aplausos pontuais em segmentos específicos da opinião pública, especialmente entre setores engajados que enxergam no Sul Global uma voz legítima de resistência às assimetrias do Sistema Internacional, marcado por séculos de colonialismo, exploração e duplo padrão normativo. 

‘Essa postura combativa, se guiada mais pela lógica da confrontação do que pela construção estratégica de consensos, rapidamente se converte em desgaste diplomático, retração de alianças e perda de credibilidade’

Essa postura combativa, quando articulada com consistência e responsabilidade, pode até contribuir para reposicionar o Brasil como um ator ético relevante nas disputas globais. No entanto, o valor simbólico desse capital retórico é volátil. Se mal manejado, se guiado mais pela lógica da confrontação do que pela construção estratégica de consensos, ele rapidamente se converte em desgaste diplomático, retração de alianças e perda de credibilidade.

A coerência entre forma e conteúdo torna-se, nesse contexto, o verdadeiro critério de legitimidade. 

Um país que pleiteia liderar a reconfiguração da ordem internacional precisa sustentar seu discurso de justiça global com um ethos diplomático à altura desse desafio. Isso implica não apenas defender princípios normativos como a autodeterminação dos povos, os direitos humanos e o multilateralismo, mas também observar os limites éticos do discurso público. 

A autoridade de um Estado não reside apenas na justeza de suas causas, mas na forma como as enuncia. Diplomacia não é performance moral, mas prática política responsável. A linguagem precisa ser precisa. A crítica, calibrada. A denúncia, informada e juridicamente fundamentada, sob pena de se converter em ruído, ou pior: em instrumento de polarização interna e isolamento externo.

‘O papel que o Brasil aspira desempenhar no cenário internacional, como defensor de uma governança mais justa, sustentável e plural, exige justamente o oposto da retórica inflamada e da interpelação identitária’

O papel que o Brasil aspira desempenhar no cenário internacional, como defensor de uma governança mais justa, sustentável e plural, exige justamente o oposto da retórica inflamada e da interpelação identitária. Exige uma diplomacia ancorada em princípios universais, mas que compreende a complexidade das relações internacionais; uma diplomacia que saiba denunciar abusos sem ceder ao maniqueísmo, e que mantenha pontes abertas mesmo com os atores mais controversos. 

Trata-se de uma tarefa delicada, que exige vocabulário técnico, domínio das normas internacionais e sensibilidade para contextos sociopolíticos diversos, muito diferente do terreno movediço das generalizações morais ou das acusações precipitadas.

O episódio recente mostra, com nitidez, que ao negligenciar essas distinções essenciais, o discurso presidencial corre o risco de minar os próprios valores que pretende promover. 

‘Há um preço elevado a ser pago quando se abandona a prudência institucional em favor do impacto retórico’

Há um preço elevado a ser pago quando se abandona a prudência institucional em favor do impacto retórico. E esse preço não se limita ao constrangimento em fóruns multilaterais ou à deterioração pontual das relações bilaterais: ele pode significar o colapso da autoridade moral do Brasil como mediador confiável, e ainda, a erosão do tecido democrático interno, ao permitir que a linguagem do Estado alimente desconfianças entre grupos identitários.

Denunciar injustiças é, sem dúvida, um imperativo moral, especialmente para um país com a trajetória histórica do Brasil, marcado pela escravidão, pela desigualdade e pelo engajamento em causas do Sul Global. 

Mas fazê-lo sem responsabilidade institucional e sem o devido cuidado com os efeitos colaterais das palavras é abandonar o campo da diplomacia e adentrar perigosamente no território da demagogia. Nesse limite, a bravura se confunde com imprudência, e a autoridade ética cede lugar à irrelevância estratégica.

Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter