As eleições em Taiwan e a China
Vitória de candidato refratário às relações com a China foi vista como um referendo em defesa da separação da ilha. Para embaixador, esta herança só terá desfecho quando os dois lados do estreito chegarem a uma fórmula de convivência que permita a independência e a unidade, algo no modelo da Commonwealth britânica
Vitória de candidato refratário às relações com a China foi vista como um referendo em defesa da separação da ilha. Para embaixador, esta herança só terá desfecho quando os dois lados do estreito chegarem a uma fórmula de convivência que permita a independência e a unidade, algo no modelo da Commonwealth britânica
Por Fausto Godoy*
O médico Lai Ching-te (conhecido como William Lai), atual vice-presidente de Taiwan e candidato do Partido Democrático Progressista (PDP), venceu neste sábado (13/01) as eleições presidenciais na ilha. Ele sucede a mandatária anterior, Tsai Ing-wen, do seu mesmo Partido, e teve como opositores o atual prefeito de Nova Taipé, Hou Yu-ih, do partido Kuomintang (KMT) e o ex-prefeito de Taipé, Ko Wen-je, do Partido Popular de Taiwan (TPP), ambos partidos menos refratários às relações com Pequim.
Lai obteve 40,2% dos votos dos 71,86% de eleitores que compareceram às urnas, o que representou uma redução de 3,04% em relação ao pleito de 2020. Há uma outra dimensão importante nestas eleições: o PDP perdeu a maioria no parlamento, e agora tem 51 assentos, contra 52 do Kuomintang e 8 do PPT. A este propósito, esta foi a primeira vez desde a eleição de 2000 que o candidato vencedor obteve menos de 50% dos votos, mas também a primeira que um partido, sobretudo de “resistência” ao continente, vence mais de dois pleitos presidenciais consecutivos desde que as eleições diretas foram introduzidas em 1996.
A imprensa ocidental saudou a vitória como um “referendo da disposição da população de se separar do continente e seguir caminho próprio”. Segundo o analista e professor Oliver Stuenkel, em matéria publicada no Estadão, “…durante a campanha, o governo de Pequim havia feito de tudo para evitar a vitória de Lai, descrevendo-o como “grave perigo” e alertando Taiwan que se tratava de uma “escolha entre a paz e a guerra” e “a prosperidade e a recessão”. Além disso, a China inundou Taiwan de fake news para reduzir o apoio ao Partido Democrático Progressista (PDP), agremiação de Lai, com o qual Pequim se recusa a dialogar”, segundo ele.
Em comunicado, a União Europeia celebrou o resultado das eleições e felicitou Lai pela vitória. Em seu primeiro pronunciamento após sua eleição, este declarou: “quero agradecer ao povo de Taiwan por escrever um novo capítulo na nossa democracia, mostrando ao mundo o quanto a valorizamos. Este é o nosso compromisso inabalável. O povo resistiu com sucesso à pressão de forças externas para influenciar as eleições”. Prudentemente, porém, garantiu que está disposto a “dialogar com os chineses com base na dignidade e na paridade”.
A história se repete. Para intimidar, o Exército de Libertação Popular (ELP) fez manobras militares nos arredores da ilha durante a campanha e o governo chinês aumentou tarifas sobre uma série de produtos taiwaneses, sinalizando que poderia impor sanções mais amplas se Lai vencesse o pleito e ameaçasse o “status quo” vigente. A campanha foi definida por Pequim como uma “escolha entre a guerra e a paz”, que, de resto, afirmou que a vitória de Lai “não pode representar a opinião pública dominante na ilha, posto que ele não alcançou a maioria absoluta dos votos”.
O quanto disto é ameaça real e quanto é retórica?
Tomo como referência a minha experiência pessoal, pois eu servia na nossa embaixada em Pequim, em 1995, quando o então presidente “separatista” de Taiwan, Lee Teng-hui, realizou, em março daquele ano, uma visita “privada” à Iowa State University, sua alma mater americana, durante o governo Clinton.
Pequim reagiu com grande contundência, e o ELP realizou várias manobras e movimentos intimidatórios ao largo do estreito. Os que estávamos servindo na China pensávamos que a situação poderia se derivar para um confronto armado de dimensões incalculáveis, visto o compromisso assumido pelos Estados Unidos de preservar a segurança e a incolumidade da ilha pelo Taiwan Relations Act, quando, em 1979, transferiram o reconhecimento do país de Taipé para Pequim. Isto não aconteceu, como sabemos.
Recorramos, então, à história para melhor entendermos o que está acontecendo.
A partir do momento em que os refugiados de Chiang Kai-shek aportaram em Taiwan, em 1949, o foco da economia da “Ilha rebelde” – como os continentais a chamam – passou a recair na indústria leve e nas pequenas e médias empresas, sobretudo de microprocessadores.
Com esta política, começou a tomar forma a que seria a base para um novo padrão de desenvolvimento. Esta fórmula começou a demonstrar crescente impulso na década de 1960, substituindo a estrutura agrária anterior. Neste cenário, o papel do governo na economia diminuiu gradualmente, e muitas empresas estatais foram privatizadas, sobretudo a partir da década de 1980.
Com o sucesso alcançado por este processo, um forte sentimento nativista consolidou-se no seio da população no sentido não de renegar a “chinesidade ancestral”, mas marcar a diferença dos universos político-econômicos. Enquanto o continente se engalfinhava nas comoções da Revolução Cultural de Mao Tsé Tung, a Ilha, sob a batuta do Kuomintang, prosperava. Fruto disto, as gerações mais jovens se sentiam – e se sentem cada vez mais – “taiwanesas” e não mais “chinesas”.
Só que os crescentes custos de produção e de mão-de-obra decorrentes deste mesmo “sucesso” levaram os empresários taiwaneses, com o objetivo de manter competividade, a transferir cada vez mais suas bases de produção para as “zonas econômicas especiais” que as reformas econômicas de Deng Xiaoping, a partir de 1979, estavam impulsionando no Vale do Rio das Pérolas, no sul da China.
Concomitantemente, o continente começava a ganhar crescente ímpeto na economia mundial, e hoje é não somente o segundo maior PIB nominal, mas o maior PIB por paridade de poder de compra do planeta, ameaçando (se é que ainda o faz) a hegemonia dos americanos.
A imbricação econômico-comercial entre os dois chegou a tal ponto que hoje o continente é o principal parceiro comercial da ilha.”Inimigos“ e maiores parceiros ao mesmo tempo – paradoxo que a cabeça ocidental não entende -, a ponto de em 2010 Taiwan ter assinado um acordo com a RPC – o Acordo-Quadro de Cooperação Econômica”/ECFA – que permitiu o crescimento do comércio intraestreito. Desta forma, o continente, que já era o principal parceiro comercial de Taiwan desde 2005 – quando representava 17% de seus fluxos comerciais – passou a responder a partir de 2022 por 25% das exportações da ilha, e 20% de suas importações. Ou seja, uma interdependência real, que se contrapõe ao discurso separatista.
Isto economicamente. Entretanto, do ponto-de-vista civilizacional, um dos pilares para se entender o que é a China é o conceito de “chinesidade” antes mesmo do que é o país “China”. O seu significado em mandarim é Zhonguo (中華), “a terra do meio/centro”, um conceito que envolve a história, as tradições e os anseios compartilhados por toda a população. Este conceito se realiza dentro de um território, o qual tem que ser preservado erga omnes, e que inclui Taiwan. Aliás, para manter esta unidade, durante milênios os chineses ergueram muralhas que impediam a entrada dos “bárbaros”, que é como eles nomeavam todos aqueles que não são de cepa chinesa.
Haveria, portanto, um conflito entre ser ancestralmente chinês – com o que concordam os ilhéus – e politicamente taiwanês? Este é o grande dilema. Deng Xiaoping tinha razão quando afirmava que a “questão taiwanesa” deveria ter sido solucionada por Mao e Chiang Kai-shek quando ainda estavam vivos. Esta herança “maldita” só terá desfecho, a meu ver, quando os dois lados do estreito chegarem a uma fórmula de convivência que permita a independência e a unidade; estaríamos vislumbrando uma fórmula semelhante à da Commonwealth britânica?
*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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