Os chineses e os talibãs
Governo chinês reconheceu embaixador afegão, primeiro grande reconhecimento ao governo talibã instalado em 2021 e gesto que foi contra consenso internacional. Para diplomata brasileiro, medida estratégica reflete interesses comerciais e geopolíticos da China e pode ser considerada razoável ao encarar a realidade do país
Governo chinês reconheceu embaixador afegão, primeiro grande reconhecimento ao governo talibã instalado em 2021 e gesto que foi contra consenso internacional. Para diplomata brasileiro, medida estratégica reflete interesses comerciais e geopolíticos da China e pode ser considerada razoável ao encarar a realidade do país
Por Fausto Godoy*
Polemizando…
Aconteceu, finalmente. No dia 30 de janeiro, o enviado dos talibãs, Asadullah Bilal Karimi, apresentou as credenciais que o nomeiam embaixador plenipotenciário do Emirado Islâmico do Afeganistão perante o governo da República Popular da China.
O presidente Xi Jinping o recebeu em cerimônia solene no Grande Salão do Povo. Este foi o primeiro reconhecimento oficial de um governo mundial ao grupo que está no poder em Cabul desde 15 de agosto de 2021, quando ocupou a capital afegã após a partida das tropas americanas e da Otan, e assumiu o controle de facto sobre a maior parte do país. O grupo agora supervisiona, como “governo provisório”, embaixadas em pelo menos 14 países, incluindo Paquistão, Uzbequistão e Turcomenistão.
Este gesto vai em contra a quase unanimidade dos países que reconhecem a República Islâmica do Afeganistão, mas não o Emirado Islâmico do Afeganistão, título com que os talibãs batizaram o governo que ora ocupam. Isto já era de certa forma esperado, pois desde o início do processo Pequim manteve um papel dúbio (estratégico?), o que, aliás, ficou evidente quando, antes mesmo da ocupação de Cabul, em julho de 2021, uma delegação talibã importante encontrou-se em Tianjin, na China, com ninguém menos que o chanceler chinês Wang Yi para tratar de temas de grande sensibilidade para os chineses nas esferas política, econômica e de segurança.
Entretanto, os chineses têm-se evadido de uma resposta concreta à questão levantada pela imprensa internacional sobre se o seu governo reconhece oficialmente o status quo no Afeganistão. Segundo circulou, questionado num briefing a jornalistas, o porta-voz da Chancelaria, Wang Wenbin, “esquivou-se de responder à pergunta direta sobre se a China agora reconhece o governo do talibã em Cabul”… e afirmou que “a China acredita que o Afeganistão não deve ser excluído da comunidade internacional”, acrescentando que “é protocolo diplomático normal para seu governo receber e credenciar o embaixador do governo interino afegão”.
A situação ainda permanece dúbia, ao que parece; Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, disse que “cabe às autoridades chinesas esclarecer se Pequim reconheceu oficialmente o regime talibã”. Para os Estados Unidos, disse Miller, “a relação do talibã com a comunidade internacional depende de suas ações”. Acrescente-se que as Nações Unidas têm negado repetidamente os pedidos da liderança de Cabul de ser representada no organismo mundial. Entretanto, para muitos especialistas “o sinal é inequívoco, pois nenhum chefe de Estado aceitaria credenciais de um embaixador, se não reconhecesse o seu governo. Neste caso, os líderes chineses estão tratando o enviado do talibã da mesma maneira que outros embaixadores, numa clara indicação de reconhecimento”, afirmou Javid Ahmad, ex-embaixador afegão nos Emirados Árabes Unidos sob o regime antigo.
Independentemente das questões técnico-protocolar-políticas envolvidas, quais seriam os motivos que levaram a República Popular a enfrentar a opinião da quase unanimidade da comunidade internacional e tomar tal atitude? O que está em jogo entre ambos? Trata-se, afinal, de um gesto audacioso e fora dos padrões da política externa de Pequim de “não-interferência nos assuntos internos de outros países”, princípio que ela erigiu como inegociável e erga omnes: afinal, o governo talibã é considerado “provisório” por toda a comunidade internacional.
Vários são os seus motivos, do ângulo da realpolitik, a meu ver. Primeiramente, a sensibilidade estratégica da região é questão fundamental: o Afeganistão, na confluência de todas as Ásias, tem na sua vizinhança nada menos que o Paquistão, a própria China, o Irã e as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central – além de, um pouco mais distante, a Índia e a Rússia -, em plena disputa, de uma forma ou outra, por protagonismo, seja econômico, seja político, ou até mesmo religioso (sunitas x xiitas); historicamente, aliás, pois foi ali que os impérios russo e britânico se enfrentaram, por interposição, no século XIX, no que a história definiu como o “grande jogo”.
Neste contexto, é fundamental para Pequim manter os afegãos – de qualquer lado que estejam – “sob controle”. Ademais, os dois vizinhos fazem fronteira, ainda de que apenas 74 km, mas justamente numa das regiões mais sensíveis para Pequim – a Província Autônoma de Xinjiang – onde se concentra a militância separatista islâmica uigur, que busca sua independência, anátema para as autoridades chinesas. Para elas, é fundamental que seja derrotado o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM), organização terrorista “que representa uma ameaça direta à segurança nacional e à integridade territorial da China”. Foi, aliás, o que o chanceler Wang Yi propôs à delegação que o visitou em julho de 2021. Neste contexto, a aliança e a “conivência” com os talibãs é fundamental.
Outro vetor, este de caráter econômico, mas igualmente estratégico para os chineses, é a iniciativa que vêm desenvolvendo desde 2010 de propulsar a ajuda econômica e os investimentos no Afeganistão no âmbito dos seus ambiciosos projetos da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), a “nova rota da seda”. O setor metalúrgico é uma das principais vertentes. A respeito, a Corporação Metalúrgica da China (MCC) anunciou significativo aporte de fundos para desenvolver as minas de cobre no solo afegão, o que vem fazendo desde 2010. Este é apenas um exemplo: em suma, para o sucesso da Iniciativa da BRI é fundamental a estabilidade do Afeganistão.
Por sua vez, geograficamente, o país constitui a rota terrestre mais curta entre a China e o Oriente Médio, o Golfo Pérsico e o Mar da Arábia. Paralelamente, qualquer instabilidade regional poderia ameaçar não apenas a BRI, mas também o Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC), projeto fundamental de desenvolvimento do porto de Gwadar, no Paquistão, que os chineses priorizam para viabilizar as exportações da República Popular através do Oceano Índico, facilitando sobremaneira seu comércio com o Ocidente.
Neste contexto, como opinar sobre a decisão de Pequim? Ela deveria ser imitada? Do ponto-de-vista político, a pergunta que não quer se calar – e que se estão fazendo várias autoridades, inclusive no âmbito das Nações Unidas – é se não seria mais estratégico, diante do fato consumado da presença efetiva dos talibãs no poder em Cabul, mesmo que “provisória” (?), confrontar a realidade e tentar uma interlocução que seja minimamente razoável a tê-los como “párias” e impedir que a população afegã e a comunidade internacional encontrem um mínimo de convivência que salvaguarde inclusive a vida dos que lá ficaram à espera de um refúgio no exterior. Ou seja, teriam os chineses, no fundo, razão? Politicamente “incorreto”? Certamente, para muitos. Razoável? Quiçá.
To be continued…
*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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