Fernanda Nanci Gonçalves: Crises na América do Sul
Perspectiva de novos tempos na região com a onda de governos de centro-esquerda esbarra em série de crises econômicas e políticas domésticas nos principais países sul-americanos. Para professora de relações internacionais, a retomada do ativismo na região depende de superação de desafios domésticos, garantindo a essas lideranças a capacidade de governar com estabilidade política
Perspectiva de novos tempos na região com a onda de governos de centro-esquerda esbarra em série de crises econômicas e políticas domésticas nos principais países sul-americanos. Para professora de relações internacionais, a retomada do ativismo na região depende de superação de desafios domésticos, garantindo a essas lideranças a capacidade de governar com estabilidade política
Por Fernanda Nanci Gonçalves*
Em janeiro deste ano escrevi para a Interesse Nacional tratando dos novos tempos que a América do Sul poderia vivenciar com a retomada da cooperação e integração regional proposta pelos governantes de centro-esquerda, em especial, após as mudanças de governo na Argentina (2019), Bolívia (2020), Peru (2021), Chile (2022), Colômbia (2022) e Brasil (2023).
Naquele texto, mencionei que os tempos não são fáceis na América do Sul, pois mesmo que as propostas de transformações políticas das novas lideranças sejam fortes no plano do discurso, na prática existem inúmeras dificuldades para governar e construir alianças que garantam a estabilidade política e institucional necessária à consecução dos programas que levaram estas lideranças ao poder.
Na Argentina, a crise econômica se aprofunda. O país vizinho acumula déficits fiscais, enfrenta a valorização elevada do dólar frente à concomitante desvalorização do peso, encara inflação com índices de 70% ao ano (foi 104,3% no último mês de março) e além de ter um governo marcado por ofertar inúmeros subsídios, já teve diferentes ministros da Economia ao longo do governo Alberto Fernández que tentaram, em vão, solucionar os problemas financeiros do país. A expectativa é que o Produto Interno Bruto (PIB) argentino passe de 2% a zero neste ano e o governo, que deve mais de U$S 40 bilhões ao Fundo Monetário Internacional (FMI), está sem credibilidade, o que dificulta seu acesso à capital internacional.
Além da crise econômica, os argentinos passam pela maior seca de sua história desde 1929 e vivem uma crise política complexa. A coalizão de esquerda que apoia o presidente Fernández está dividida entre aqueles que o apoiam e aqueles que sustentam a posição de sua vice-presidente, Cristina Kirchner. O atual presidente tem menos de 20% de aprovação da população e anunciou que não concorrerá à reeleição na corrida presidencial que ocorre neste ano no país. Em busca de tentar melhorar a situação econômica, o presidente argentino agendou uma reunião emergencial com o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 2 de maio, para tratar das relações bilaterais entre os países, do comércio exterior e de avanços na agenda de cooperação. O Brasil é o principal parceiro comercial dos argentinos.
A Bolívia enfrenta atualmente uma grave crise econômica. O país já vinha enfrentando uma redução grande das suas reservas internacionais, apresentando desequilíbrio das contas públicas e nos últimos meses sua taxa de câmbio atingiu níveis recordes. A grave situação financeira ficou explícita quando o governo interveio no quarto maior banco do país, o Banco Fassil, em função de problemas de liquidez.
Segundo os jornais bolivianos, diretores do banco foram presos acusados de má gestão e foi determinado pela justiça que devolvam os recursos de mais de 1 milhão de clientes. Centenas de funcionários do banco foram as ruas em protesto, uma vez que as agências foram fechadas. A crise econômica tem sido um empecilho na administração de Luís Arce, que enfrenta dificuldades para implantar seus programas governamentais.
No Peru, a crise política se arrasta desde dezembro de 2022, quando o então presidente Pedro Castillo, em meio à votação de um processo de impeachment que estava sofrendo pelo congresso, dissolveu o Congresso e declarou um governo de emergência, em uma tentativa de se manter no poder. Acusado de golpe, Castillo foi preso e sua vice-presidente Dina Boluarte assumiu o poder, sem contar com apoio do Congresso e da população. Iniciou-se então uma grave onda de protestos no Peru, com mortes e acusações generalizadas de abuso e uso desproporcional da violência pela polícia e forças armadas para conter os manifestantes.
Boluarte segue na presidência tentando administrar o país e garantir sua governabilidade até as próximas eleições que têm previsão para 2024, já tendo realizado trocas ministeriais. Já Castillo segue preso e investigado. Atualmente, a presidente está lidando com uma questão complicada internamente que é a migração irregular massiva em território peruano na fronteira com o Chile, o que está gerando uma tensão diplomática entre os países vizinhos. Organizações humanitárias criticam o governo peruano pela situação crítica em que os migrantes (maioria venezuelana e haitiana) se encontram na fronteira: sem alimentos, água e alojamento em uma região desértica.
O Chile, por sua vez, tem visto o presidente Gabriel Boric dar alguns acenos à direita. Após ter suas propostas de reforma constitucional e tributárias rejeitadas, o mandatário –que foi eleito com um discurso de mudança e inclinado à esquerda– vem enfrentando inúmeras dificuldades de governabilidade ao ter que lidar com um Congresso onde não possui maioria.
Como argumenta Diogo Ives, “o governo […] precisa negociar com uma direita liberal bem articulada, reunida na coalizão Chile Vamos e com uma extrema-direita pouco disposta a conversar”. Já foram realizadas diversas mudanças ministeriais pelo presidente, com o intuito de facilitar a negociação com o Congresso e avançar sua agenda política, porém Boric tem feito isso por meio de uma inclinação política de sua posição para o centro, em busca de garantir estabilidade no país.
Já os colombianos enfrentaram em abril uma conturbada crise política. Desde que assumiu a Presidência em agosto de 2022, o presidente Gustavo Petro encontra dificuldades para implementar seu plano de governo, assentado na promessa de mudança que visa atender às demandas da sociedade que o levou ao poder. Entre essas mudanças estão, por exemplo, a reforma do sistema de saúde (com vistas a reduzir a participação do setor privado) e o projeto sobre redistribuição de terras e reforma agrária, temas muito sensíveis e que suscitam reações de oposição de diferentes setores do Congresso e Senado, onde o presidente possui maioria.
Todavia, sua própria coligação governamental –formada por membros dos partidos Liberal, Conservador e da U (centro)– não tem apoiado propostas reformistas do presidente. Lideranças desses partidos chegaram a ameaçar, segundo fontes dos jornais colombianos, expulsar deputados que votassem favoravelmente às propostas de reforma do governo. Com isso, aumentou a tensão doméstica e Petro se manifestou em sua conta no Twitter indicando que precisava “remodelar o governo”. No dia seguinte, postou um comunicado à opinião pública anunciando as mudanças nos Ministérios da Fazenda, Agricultura, Interior, Saúde, Ciência, Transporte e no Departamento Administrativo da Presidência afirmando ser necessário para implementar as mudanças que o elegeram e criticando os setores políticos tradicionais e que buscam a manutenção do establishment.
Para continuar a agenda de “mudança”, que inclui reformas no sistema trabalhista e previdenciário também, Petro indicou para esses ministérios figuras políticas que são conhecidas dele e consideradas aliadas do governo. Desse modo, o governo se inclina mais à esquerda e menos ao centro.
Por fim, o novo governo Lula no Brasil também vem enfrentando dificuldades. A divulgação de vídeos dos atos terroristas e antidemocráticos de 8 de janeiro levou à exoneração de 29 agentes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), além do ministro do GSI, Gonçalves Dias, e de secretários nacionais da pasta. O governo também tem enfrentando pressões para a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), tendo que lidar com a pressões do setor do agronegócio e ao mesmo tempo com as demandas do MST e de apoiadores do seu partido para que as políticas de reforma agrária sejam implementadas.
Além disso, o presidente pode perder base de apoio no Congresso em função da atual crise no partido União Brasil, com o qual o presidente conta para aprovação de projetos de interesse do seu partido. No plano externo, Lula foi alvo de diversas críticas por suas declarações em relação à guerra da Rússia na Ucrânia e se explicou em visita a Portugal e à Espanha.
Assim como mencionado em janeiro, para que os projetos de política externa desses países avancem e para que sejam capazes de retomar o ativismo na região e no caso do Brasil, no mundo, os desafios domésticos precisam ser superados, garantindo a essas lideranças a capacidade de governar com estabilidade política.
O avanço de projetos de integração regional sul-americanos depende, em grande parte, dos países poderem avançar seus programas e suas ideias progressistas em nível internacional. Sem apoio doméstico e em meio a crises econômicas e instabilidade institucional, torna-se difícil construir uma sub-região integrada e atrativa internacionalmente. São novos tempos atualmente, mas em muitos aspectos diferentes daqueles anos da onda rosa no início do século XXI.
*Fernanda Nanci Gonçalves é colunista da Interesse Nacional. É professora e coordenadora do curso de relações internacionais do Unilasalle-RJ, pesquisadora do NEAAPE (Iesp-Uerj) e colaboradora do OPSA (Iesp-Uerj).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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