Governo brasileiro morde a isca
Envolvimento desnecessário do Itamaraty nas discussões entre a administração de Donald Trump e o STF pode se revelar um erro e deixar o Brasil sem capacidade de reação a pressões dos EUA

Era perfeitamente previsível que a disputa judicial envolvendo Elon Musk e o STF pudesse se desdobrar em novos capítulos, em função não só da posição que Musk ocupa hoje no governo dos EUA, como também pelo lobby da oposição (bolsonarista) contra o governo Lula nos EUA. O que surpreendeu foi o governo Lula deixar-se envolver nessa questão.
Nesta semana, uma empresa norte-americana, TMTC, (pertencente ao grupo Trump) e a plataforma de compartilhamento de vídeos Rumble abriram uma ação contra o ministro Alexandre de Moraes a propósito da questão entre Musk e o STF. A ação foi rejeitada por juíza na Flórida, mas a Justiça também determinou que a Rumble não tinha obrigação de cumprir nos EUA as decisões judiciais expedidas por Moraes.
‘Uma comissão do Congresso norte-americano aprovou projeto de lei que cria sanções (cassação do visto) contra o ministro Alexandre de Moraes’
Na mesma linha, uma comissão do Congresso norte-americano aprovou projeto de lei (No Censors on our Shores Act) que cria sanções (cassação do visto) contra o ministro Alexandre de Moraes. O projeto ainda não foi aprovado pelo plenário. Nas redes sociais, por outro lado, Musk teria sugerido o confisco de bens de Moraes nos EUA.
Nesta semana, o Departamento do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado emitiu nota em que trata da questão da liberdade de expressão genericamente, sem mencionar explicitamente a disputa entre Musk e Moraes.
“Respeito pela soberania é uma via de mão dupla com todos os parceiros dos EUA, incluindo o Brasil. Bloquear o acesso à informação e impor multas a empresas sediadas nos EUA por se recusarem a censurar indivíduos que lá vivem é incompatível com valores democráticos, incluindo a liberdade de expressão”.
‘A resposta deveria ter sido divulgada pelo STF e não pelo Itamaraty para evitar o envolvimento político do governo Lula’
Essa nota não poderia ficar sem resposta, no mesmo tom e na mesma generalidade. A resposta deveria ter sido divulgada pelo STF e não pelo Itamaraty para evitar o envolvimento político do governo Lula.
O STF e o Palácio do Planalto vestiram a carapuça e forçaram o Itamaraty a emitir nota, cuja versão final tudo indica não foi de autoria do Itamaraty, politizando o assunto.
Manifestando surpresa pela Nota do Departamento de Estado (inexato foi do Departamento do Hemisfério Ocidental), o Itamaraty rejeita a tentativa de politizar o assunto (a nota americana não entra em detalhes), afirma que o documento distorce o sentido da decisão do STF (não mencionado na nota americana) e conclui fazendo alusão aos atos de 8 de janeiro, ao afirmar que o Estado brasileiro foi alvo de uma orquestração antidemocrática baseada na desinformação (questão não mencionada na nota americana).
‘Ao divulgar a nota do Itamaraty, o governo brasileiro se envolve diretamente, politizando o assunto’
A ação privada, o projeto no Congresso americano e a nota do Departamento do Hemisfério Ocidental não se referiram ao governo brasileiro, mas somente direta ou indiretamente ao STF. Ao divulgar a nota do Itamaraty, o governo brasileiro se envolve diretamente, politizando o assunto.
Se é que houve intenção de atrair o governo brasileiro para essa questão, o objetivo foi atingido. O governo brasileiro mordeu a isca e abriu uma confrontação com o governo norte-americano, que o Itamaraty procurou evitar para não ampliar a tensão com Washington e evitar um problema para o governo.
‘Sem cacife, o Brasil fica sujeito ao arbítrio de Trump que, além das medidas comerciais (tarifas), poderá escalar com outros tipos de restrições’
Sem cacife, o Brasil fica sujeito ao arbítrio de Trump que, além das medidas comerciais (tarifas), poderá escalar com outros tipos de restrições, sobretudo quando se pensa no próximo julgamento que envolverá o ex-presidente Bolsonaro.
Sem canais diretos de comunicação com o alto escalão do governo Trump e do Departamento de Estado, Brasília tenta neutralizar o lobby oposicionista (bolsonarista) que está conseguindo influir no Congresso e nos centros de decisão do governo de Washington, com o apoio de personagens influentes como Elon Musk, Steve Bannon e congressistas republicanos.
É importante lembrar que, quando da ação recente de um escritório de advocacia londrino contra a Vale e a Samarco pelo desastre ecológico de Mariana, o governo brasileiro que estava indiretamente envolvido na questão negociando com as empresas a indenização às pessoas e aos municípios, o Itamaraty preferiu não interferir na disputa jurídica.
O exemplo de Londres não foi seguido na disputa entre empresa privada americana, Congresso dos EUA e o STF. A questão ganha agora outro nível com o envolvimento dos governos dos EUA e do Brasil.
A negociação sobre a tarifa sobre o aço poderá ficar afetada. Eventual escalada na tensão entre os dois países vai fazer o Itamaraty lamentar a divulgação da nota oficial do governo brasileiro, em resposta a nota do Departamento do Hemisfério Ocidental.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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