Hayle Melim Gadelha: Interpretar, comunicar e conectar-se: as funções da nova diplomacia
O avanço técnico-científico-informacional faz com que as relações exteriores extrapolem as interações estatais. O cenário demanda das chancelarias criatividade e capacidade de inovação e deve ser visto como uma oportunidade o diplomata reafirmar sua relevância no mundo contemporâneo
O avanço técnico-científico-informacional faz com que as relações exteriores extrapolem as interações estatais. O cenário demanda das chancelarias criatividade e capacidade de inovação e deve ser visto como uma oportunidade para o diplomata reafirmar sua relevância no mundo contemporâneo
Por Hayle Melim Gadelha*
O renascimento da política externa brasileira é oportunidade de revisitar nosso patrimônio diplomático. É senso comum que o Brasil possui uma chancelaria de excelência, cujo êxito mais reconhecido – o de garantir a vastidão territorial do país por meio de negociações pacíficas com seus vizinhos – remonta aos tempos em que aristocratas celebravam entre si tratados e alianças, muitas vezes sigilosos. A democratização do acesso ao serviço exterior, nos anos 2000, foi passo decisivo para a modernização e a representatividade do Itamaraty; cabe, agora, atualizar e ampliar sua própria razão de ser.
Em seu livro Naked Diplomacy, o ex-embaixador britânico Tom Fletcher provoca o leitor ao perguntar por que deveríamos criar a figura do diplomata caso ela já não existisse (1). Os meios convencionais de atuação desse servidor público, em sua origem uma extensão dos soberanos, são informar, representar e negociar (2). A diplomacia, assim como a política segundo McLuhan & Fiore (3), tende a oferecer respostas de ontem para questões de hoje. Quais são, afinal, as funções do diplomata contemporâneo?
Se Barão da Ponte Ribeiro, o chamado avô da diplomacia brasileira, tinha que percorrer os Andes no lombo de um burro para manter a capital informada (4) , faz tempo que agências de notícias repercutem instantaneamente o que acontece em cada canto do planeta. Imortalizados na pintura de Jacques-Louis David, vários embaixadores, entre os quais o dos distantes Estados Unidos, representaram seus países durante a autocoroação de Napoleão e assistiram ao rearranjo da ordem mundial por ele imposta. Nos dias que correm, altas autoridades têm a possibilidade de deslocar-se rapidamente para prestigiar momentos relevantes das relações internacionais. Quando Benjamin Franklin, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, foi enviado a Paris para negociar uma aliança que garantisse o sucesso da Revolução Americana, suas mensagens tardavam e eram devassadas (5). Atualmente, a tecnologia permite toda sorte de conversas criptografadas e acertos à distância, como ficou evidente durante a pandemia de Covid-19. Já que dispomos de Zoom, Boeings e Reuters, o que justifica a manutenção de estruturas diplomáticas como a brasileira, que conta com 221 postos, entre embaixadas, consulados, missões e escritórios (6)?
O longo telegrama 511 é possivelmente o mais conhecido exemplo de um documento diplomático propositivo. Lastreado em sólido conhecimento da história e da sociedade soviéticas, o embaixador George Kennan interpretou discurso belicoso de Joseph Stálin, traçou cenários e recomendou ações que fundamentaram a doutrina norte-americana durante a Guerra Fria (7). Em pleno meio técnico-científico-informacional e ante a ubiquidade dos veículos de imprensa, são obsoletos os diplomatas que insistem em enviar à capital registros meramente descritivos, desprovidos de análises que levem em conta o interesse nacional e avaliem diferentes panoramas.
A campanha Great Britain, lançada em 2011 pelo Reino Unido, é emblemática do poder da comunicação nas relações exteriores. Fruto de parceria entre órgãos governamentais e algumas das principais empresas britânicas, a ofensiva logrou transformar o lugar do país no imaginário estrangeiro (8). Não bastar fazer-se presente junto a governos locais; é papel do diplomata criar ambiente amistoso e facilitar contatos internacionais. Por meio da chamada diplomacia pública, os estados reconhecem a realidade reticular das relações atuais e desenvolvem laços duradouros de confiança não só com governos mas principalmente com sociedades.
Na esteira do acordo sobre o programa nuclear iraniano de 2015, as lideranças das potências mundiais engajaram-se em esforços coordenados para amplificar o alcance dos compromissos obtidos (9). Criaram-se mensagens compartilhadas em várias plataformas para pautar o debate internacional sobre o tema. Hoje em dia, parte importante dos processos negociadores dão-se de maneira virtual ou são conduzidos por missões ad hoc, as quais incluem funcionários de outros ministérios que não o Itamaraty. Os diplomatas modernos devem ser flexíveis e conectar-se em redes, pessoais e digitais, que integrem atores sociais os mais diversos, de modo a transmitir e receber mensagens conducentes a uma apropriada inserção externa.
Esta era, em que as relações exteriores extrapolam as interações estatais, tem desafiado as premissas sobre as quais se fundou a diplomacia tradicional. Demandam-se das chancelarias criatividade e capacidade de inovação, em oposição à rigidez e à lentidão. O desafio da adaptação deve ser visto antes como uma oportunidade que como um obstáculo para o diplomata reafirmar sua relevância no mundo contemporâneo. Os meios de atuar não podem jamais perder de vista seus fins, cuja essência segue inalterada – perseguir o desenvolvimento e o interesse nacional, traduzir possibilidades externas em bem-estar social. O que ora justifica a existência de uma rede diplomática de excelência é a premente necessidade de interpretar a realidade forânea, comunicar valores e conectar-se com as sociedades estrangeiras.
Dessa maneira, a volta do Brasil não será para um futuro há tanto idealizado, mas para a efetiva construção de um presente mais generoso, em que uma nova diplomacia sirva ativamente à conformação de um mundo sustentável, pacífico e equilibrado.
*Hayle Melim Gadelha é colunista da Interesse Nacional. É doutor em relações internacionais pelo King’s College London e diplomata. Suas opiniões pessoais não necessariamente refletem a posição oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional.
Referências
1. Fletcher, Tom. Naked diplomacy: power and statecraft in the digital age. Londres : Harper Collins, 2016.
2. Leite Ribeiro, Guilherme Luiz. Os bastidores da diplomacia: o Bife de Zinco e outras histórias. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2007.
3. McLuhan, Marshall and Fiore, Quentin. The Medium is the Massage. Nova York : Bantam Books, 1967.
4. Soares de Souza, José Antônio. Um diplomata do Império: Barão da Ponte Ribeiro. Brasília : FUNAG, 2021.
5. Herring, George. From colony to superpower: US foreign relations since 1776. Nova York : Oxford University Press, 2008.
6. MRE. Governança. Ministério das Relações Exteriores. [Online] 2022. https://mregovbr.sharepoint.com/sites/Governanca/SitePages/Rede-de-Postos(1).aspx.
7. Kennan, George. Telegrama 511. Washington : s.n., 1946.
8. British Council. Annual Reports and Accounts . British Council. [Online] 2021. https://www.britishcouncil.org/sites/default/files/annualreport_2020-21.pdf..
9. Digdipblog. The Framing of #IranDeal on Digital Diplomacy Channels. Digdipblog. [Online] 2015. https://digdipblog.com/2015/07/14/the-framing-of-irandeal-on-digital-diplomacy-channels/.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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