01 outubro 2022

Livro discute a imagem internacional do Brasil e analisa se o país é visto como sério

Sem precursores nem veleidades teóricas, ‘O Brazil é um país sério?’ funda literatura sobre a trajetória de nossa reputação. Por meio de pílulas densas, mas de fácil digestão, o leitor é convidado a visitar o passado nacional, contado pelo olhar estrangeiro

Sem precursores nem veleidades teóricas, ‘O Brazil é um país sério?’ funda literatura sobre a trajetória de nossa reputação. Por meio de pílulas densas, mas de fácil digestão, o leitor é convidado a visitar o passado nacional, contado pelo olhar estrangeiro

Por Hayle Melim Gadelha*                        

Buarque, Daniel. O BRAZIL É UM PAÍS SÉRIO? 1ª ed. São Paulo: Pioneira, 2022. 207p.

Nas pouco mais de 207 páginas de “O Brazil é um País Sério?”, Daniel Buarque**, jornalista e doutor em relações internacionais pelo King´s College de Londres, lança luzes sobre os muitos elementos que conformam a imagem brasileira.

Com texto apurado nas redações dos principais veículos de imprensa do Brasil e na academia, seu invejável poder de síntese dá conta de olhar o objeto de longa investigação com as lentes da filosofia, neurologia, psicologia, teoria de relações internacionais, sociologia, antropologia. Sem precursores nem veleidades teóricas, a publicação funda literatura sobre a trajetória de nossa reputação. Por meio de pílulas densas, mas de fácil digestão, o leitor é convidado a visitar o passado nacional, contado pelo olhar estrangeiro.

Ao esgotar as fontes relevantes sobre o assunto – meios de comunicação, pesquisadores, autoridades, relatos de viajantes –, o livro revela o reflexo angustiante de uma sociedade “obcecada pela opinião externa”, nas palavras do autor, e inconformada com a própria aparência. Na base dessas constatações está estudo de extraordinária importância em que o mesmo Buarque destrincha cada uma das principais pesquisas de avaliação de imagens nacionais (1). Os dados mostram, consistentemente, que o Brasil se associa a cultura e aventura, mas também (e hoje principalmente) a destruição ambiental, turbulências políticas, desigualdade e corrupção. A análise quantitativa (número de menções positivas e negativas) e qualitativa (referência a centenas de matérias) referenda a ideia de que o país não é lembrado alhures como relevante em temas sérios.

O Brazil que Buarque viu e desnudou começou no Recife, passou por São Paulo, Nova York e Londres, onde, ao longo de mais de duas décadas, o jornalista observou atentamente o Brasil e seus observadores. Nos idos dos anos 2010, quando o escritor publicou Brazil, um País do Presente, havíamos chegado a acreditar na tão ensaiada pose de sério, mas à decolagem logo se seguiu uma aterrissagem forçada. O futuro ficou para trás; o presente, como apontam as abundantes evidências reunidas por Buarque, mostra um país que despreza a vida e o meio ambiente. Mesmo o persistente mas simpático apodo de “decorativo” está em cheque. Conhecer os descaminhos do prestígio brasileiro, narrado em detalhes ao longo do texto, é condição para a urgente correção de rumos defendida pelo autor.

‘Conhecer os descaminhos do prestígio brasileiro, narrado em detalhes ao longo do texto, é condição para a urgente correção de rumos defendida pelo autor’

Na introdução, o autor medita sobre a célebre frase atribuída (equivocadamente, como esclarece) a Charles de Gaulle: o Brasil não é sério. Aliás, são abundantes na publicação as expressões populares, fragmentos do imaginário nacional, bem utilizadas para montar o quebra-cabeça da reputação brasileira. Buarque lembra a euforia em torno da ascensão do Brasil há 20 anos e a derrocada que marcou a segunda década do século XXI. É difícil acreditar que o país de 2010 era o mesmo de 2020. O autor prova que a confiança que inspiramos mundo afora nos anos Fernando Henrique e Lula foi efêmera e que o prestígio do país se deteriorou rapidamente de lá para cá.

Importa a ressalva de que a o aumento de soft power detectado em rankings elaborados nos centros ricos contrasta com a visão, em países periféricos, de uma expansão imperialista corrupta e predatória. De toda maneira, os anos em que parecemos superar a imagem de frívolos, os dados confirmam, coincidiram com governos estáveis, enquanto as turbulências e o extremismo abalaram a marca do Brasil. Talvez essa oscilação não fosse tão problemática para a maioria dos que habitam o planeta, mas os brasileiros, argumenta Buarque, fomos atacados em um pouco conhecido traço distintivo, a “obsessão” sobre o que os outros pensam de nós. É uma jabuticaba, aprende-se, traduzir e discutir tudo o que se fala do país.

A histórica ambição do Brasil de elevar seu status ao de potência global não se coaduna com a percepção de um país legal e festivo, contradição discutida no primeiro capítulo da obra. Todos os longevos estereótipos nacionais, do exotismo ao hedonismo, passando pelo cafezinho e pelas Havaianas, embaraçam o desejo brasileiro de ser levado a sério como uma nação que aporta à Humanidade.

Um dos mais instigantes do livro, o breve capítulo 2 sintetiza a história da imagem do Brasil, boa parte dela marcada pela ignorância sobre nós entre as sociedades desenvolvidas. Declarações de autoridades, diários de viagens dos séculos XVI e XVII, pesquisas feitas nos Estados Unidos dos anos 1940 e impressões de Stefan Zweig reforçam o entendimento de que as poucas noções associadas ao Brasil referiam-se à natureza exuberante, à sensualidade ou ao atraso social.

Ao tratar da reputação perseguida pelo Itamaraty, no terceiro capítulo, Buarque traça panorama completo e preciso, baseado em estudo historiográfico de fôlego, da busca por prestígio que marcou a ação diplomática brasileira. Em linguagem mais acessível que a comumente utilizada para abordar o tema, examinam-se os principais vetores da ação exterior do Brasil e da determinação permanente de, com lastro em sua dimensão e recursos, reclamar assento no clube dos países que moldam o sistema internacional.

Objeto do capítulo 4 é a revelação – para um brasileiro – de que a aspiração a ser potência é antes uma idiossincrasia do Brasil que meta compartilhada pelas demais nações. Essa particularidade “obsessiva” acompanhou momentos históricos, da Independência à eleição de Lula, nos quais acorremos à validação externa. Aqui, diferentes prismas teóricos convergem para descrever a ansiedade por status e aceitação internacionais como parte nuclear da identidade brasileira.

O capítulo quinto, por sua vez, aprofunda a análise do impacto da mídia sobre as percepções que se tem do país. Detalham-se os mecanismos por meio dos quais a imprensa acaba por espelhar simplificações e estereótipos emanados dos próprios brasileiros. O autoexotismo, assim, é amplificado por representações de exuberância, festividade e violência.

O capítulo 6 traz reflexões sobre a figura do brasilianista – outro chapéu de Buarque – e seu papel na construção da imagem do Brasil. As entrevistas com os principais estudiosos da área ilustram, com o exemplo do impeachment de Dilma Rousseff, a influência e as divergências internas desse difuso e ativo grupo acadêmico.

O capítulo seguinte investiga como, de maneira contraintuitiva, a visibilidade gerada pela Copa do Mundo e pelas Olimpíadas reverberou os graves problemas nacionais, como violência e corrupção, e afetou negativamente a imagem brasileira. O êxito da realização das festas, sobreposto a um legado desastroso, reforçou os preconceitos que permeiam a reputação “decorativa” do país. Frustrou-se o projeto de diplomacia pública que visava, a partir dos megaeventos, a elevar o status do Brasil, que ao fim desceu posições nos rankings de soft power.

O oitavo capítulo estuda a vertente internacional da disputa narrativa sobre o “impeachment” ou “golpe” de 2016, a depender da interpretação do freguês. A reluzente democracia pacifista e amigável aos negócios passou a ser percebida como um desgastado retrato de um momento passado e cedeu lugar às ideias de um Brasil disfuncional e aferrado a crises sociais e econômicas.

Os tempos longos das transformações imagéticas (2) não se aplicaram durante essa “tempestade perfeita” que rapidamente arruinou o prestígio do país. Assim, como explicita o capítulo final do livro, o soft power brasileiro despencou abruptamente durante o mandato de Jair Bolsonaro, alvo de críticas da mídia, da academia e dos meios diplomáticos. Segundo o escritor, as ameaças autoritárias, o funesto enfrentamento da Covid-19, a cruzada cultural e, especialmente, a devastação ambiental deixaram o Brasil distante das normas prevalecentes na comunidade das nações. Afinal, como assinala a internacionalista Nancy Snow, angariar soft power depende de ajustar-se a certos valores dominantes no sistema internacional (3). Buarque salienta que as tentativas de Bolsonaro de melhorar sua imagem, por meio de propaganda, mostraram-se inócuas, porquanto qualquer ação de diplomacia pública deve ancorar-se na realidade para ser efetiva. Nações não são marcas comerciais, e mera publicidade, dissociada de políticas e avanços concretos, não terá impacto nas arraigadas e multifacetadas reputações dos países (4).

Como reza seu ofício, o jornalista zelou pela imparcialidade político-partidária, denunciando indistintamente corrupção, hiperestatismo, a Lava-Jato e a “escolha triste” dos eleitores brasileiros em 2018, mas não se furtou de enunciar, com lastro em vastas evidências, que “a eleição de Bolsonaro enterrou de vez qualquer narrativa positiva do Brasil no exterior”. O encerramento do ciclo de ascensão é visível na piora nas avaliações internacionais, na cobertura da imprensa e em declarações oficiais.

O ritmo da obra acompanha os tempos que correm, literalmente. A cadência jornalística poderia ganhar com o uso de infográficos que desatravancassem a inserção de interessantes seções, como a que comenta a debandada de correspondentes do Brasil e as que tratam da representação do país na historiografia holandesa, nos filmes de Hollywood ou nos arquivos da ditadura. Entre os argumentos do livro que se beneficiariam de exploração adicional está a premissa o de que o país jamais exerceu liderança na América Latina, sem que se problematizem, por exemplo, a criação de diversos mecanismos e a mediação de uma série de conflitos pelo país. Outro ponto que chama atenção é a demonstração de que, não obstante certa simpatia, o Brasil, de maneira aparentemente contraditória, careceria de soft power. O que merece exame complementar é o fato de que, ao contrário do que diz o senso comum, nosso hard power militar, econômico, populacional ou territorial excede em muito nosso chamado poder brando. Paradoxalmente, uma maneira de aumentar a influência brasileira seria fazer conhecidos nossos recursos tradicionais de poder.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/hayle-gadelha-nao-ha-evidencias-que-o-brasil-seja-uma-potencia-de-soft-power/

Em debate importante que perpassa todo o livro, a profunda compreensão de Buarque sobre as dinâmicas de imprensa é trazida para questionar o eurocentrismo pós-colonial que dita o que significa ser “sério”. Assim, medições e rankings, hoje todos elaborados em países centrais, terminam reproduzindo valores e hierarquizando nações, como uma forma de imperativo disciplinar a corroborar o status quo. Além dos numerosos méritos intrínsecos ao seu trabalho, é alentador que Buarque proponha discussões raras no meio da comunicação oficial internacional – dominado pelos Estados Unidos e Europa – sobre uma hermenêutica original da reputação dos países. O livro e o trabalho de Buarque, com efeito, poderiam fundamentar um esforço de repensar métodos de avaliações de imagem e sugerir modelo que levasse em conta visões plurais e o rearranjo em curso da ordem global.  Outro produto que a pesquisa deveria inspirar é uma necessária história da diplomacia pública brasileira, cujos contornos já se delineiam em O Brazil é um País Sério?. Finalmente, a sugestão de que a diplomacia nacional tenciona obter poder como um fim em si mesmo, sem uma ideia clara de o que fazer com ele, faria jus a desenvolvimento em estudos posteriores.

‘Se hoje o Brazil não é um país sério, pode logo voltar a ser, uma vez que se recupere primeiro o Brasil’

Buarque, em sua conclusão, lembra que a oscilação negativa de nosso prestígio pode repetir-se com sinal inverso. Se hoje o Brazil não é um país sério, pode logo voltar a ser, uma vez que se recupere primeiro o Brasil. Independentemente do resultado eleitoral deste ano, ficam as perguntas: com que um Brasil grande contribuiria para o mundo? Qual seria nosso papel numa governança renovada? Como ensina a noção de “issue of relevance” cunhada pelo consultor Simon Anholt (5), por ser hoje amplamente conhecido no mundo, o desafio do país de transformar sua imagem é maior e requer mensagens consistentes e coerentes. O Brasil virou sinônimo de catástrofe climática. A atuação ambiental que outrora representava um ativo nos tornou, por meio do que Buarque chamou “a pior diplomacia do mundo”, menos importantes na própria região e um “pária” que ameaça o mundo. Como o autor sinaliza, as agendas de meio ambiente e clima poderão, no futuro próximo, fornecer o papel buscado por esse ator com apetite de protagonismo.

‘Aproveitemos a obsessão narcísica para, sem lutar contra as associações festivas, mas antes valendo-nos delas como ponto de partida, melhorar nossa puída imagem’

Para além da dimensão ética, colheremos frutos políticos e de reputação ao liderar os esforços pela proposição de uma bioeconomia livre de desmatamento em que energias limpas se integrem aos processos produtivos. Aproveitemos a obsessão narcísica para, sem lutar contra as associações festivas, mas antes valendo-nos delas como ponto de partida, melhorar nossa puída imagem, oferecendo ao mundo um modelo de desenvolvimento efetivamente sustentável.

É alentador contar com o conhecimento acumulado de Daniel Buarque para que se complete, esperemos, uma trilogia com a investigação da reputação brasileira em um novo período de normalidade. O Brazil que ele começou a ver há muitos anos segue reinventando-se; há de conciliar-se com seu reflexo e voltar a levantar voo em busca da seriedade perdida.


*Hayle Melim Gadelha é doutor em relações internacionais pelo King’s College London. Suas opiniões pessoais não refletem a posição oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.


**O autor do livro também é editor-executivo do portal Interesse Nacional


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional.


Referências

1. Brazil Is Not (Perceived as) a Serious Country: Exposing Gaps between the External Images and the International Ambitions of the Nations. Buarque, Daniel. 2019, Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, pp. 285-314.

2. Pisano, Deborah Bull & Francesco. The Art of Soft Power: a Study of Cultural Diplomacy at the UN. Londres : King´s Colege London, 2017.

3. Snow, Nancy. Rethinking public diplomacy. In N. Snow, & P. M. Taylor . [A. do livro] Nancy Snow & Philip Tayolr. Routledge Handbook of Public Diplomacy. Oxon : Routledge, 2009.

4. Aronczyk, Melissa. Branding the nation: the global business of national indentity . Oxford : Oxford University, 2013.

5. Anholt, Simon. Places: identity, image and reputation. Nova York : Palgrave Macmillan, 2010.

6. —. Public diplomacy and competitive identity: where´s the link? Golan, Guy & Yang, Sung-Un. International Public Relations and Public Diplomacy. Nova York : Peter Lang, 2015.

7. Era uma Vez o País do Futuro. Gadelha, Hayle. 2022, Problemas Brasileiros, pp. https://revistapb.com.br/artigos/era-uma-vez-o-pais-do-futuro/.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter