15 maio 2025

Lula em Pequim

Parceria estratégica entre Brasil e China esbarra em desconhecimento sobre o gigante asiático e no uso político do apodo ‘comunista’. A parceria resguarda diferenças ideológicas e é preciso entender que o projeto global da China é econômico e diferente da busca ocidental por hegemonia 

Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Xi Jinping se encontram no Grande Palácio do Povo, em Pequim (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Se há um termo que possa qualificar a “visita de Estado” que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acaba de realizar à China, entre os dias 12 e 13 deste mês, é “apoteótica”.

Primeiramente é preciso esclarecer algumas nuances que escapam à maioria dos que não têm contato cotidiano com o fazer diplomático. 

Refiro-me ao status que foi conferido a esta visita: não uma “visita oficial”, como na imensa maioria delas, mas uma “visita de Estado”, aquela à qual é emprestada a mais alta simbologia, revestida de um protocolo especial. São pouquíssimas, com efeito, as visitas que merecem este formato. 

‘O presidente Lula participou como convidado de honra da Reunião Ministerial do IV Fórum Celac-China’

O presidente Lula participou, ainda, como convidado de honra, da Reunião Ministerial do IV Fórum Celac-China, organismo regional que congrega os países da América Latina e do Caribe, que ocorria paralelamente em Pequim. Foi esta a terceira vez que os dois mandatários se encontraram no atual governo Lula.

Foram firmados 20 documentos nas mais distintas áreas, tanto entre os dois presidentes quanto entre autoridades de distintos setores. Ouso destacar, por sua importância: transferência de tecnologia; Inteligência Artificial; investimentos na Economia Digital; desenvolvimento sustentável da mineração; “swap” das moedas locais entre o Banco Central do Brasil e o Banco Popular da China; restauração de vegetação e sequestro de carbono; requisitos sanitários e fitossanitários para a exportação de proteínas e grãos; desenvolvimento sustentável da energia nuclear; cooperação em etanol e mobilidade sustentável; mudança do clima; cooperação no setor de florestas e pastagens… Ufa! A lista é longa e ambiciosa.

‘De mais simbólico, ainda, foi a “Declaração Conjunta” que Lula e Xi firmaram sobre o fortalecimento da cooperação entre os dois países na defesa do multilateralismo, que caracteriza o relacionamento sino-brasileiro como modelo de colaboração entre dois grandes países em desenvolvimento’

De mais simbólico, ainda, foi a “Declaração Conjunta” que Lula e Xi firmaram sobre o fortalecimento da cooperação entre os dois países na defesa do multilateralismo. Segundo o documento, “os chefes de Estado chamaram a atenção para os desafios enfrentados pelos países em desenvolvimento diante da atual conjuntura internacional e defenderam o fortalecimento da cooperação entre países do Sul Global. A este respeito, caracterizaram o relacionamento sino-brasileiro como modelo de colaboração entre dois grandes países em desenvolvimento”, assinala o documento. 

Na esfera bilateral ambos se comprometeram “a impulsionar conjuntamente os processos de modernização do Brasil e da China, facilitar investimentos, promover a interconectividade regional e contribuir para o desenvolvimento sustentável”.

O quanto disto é retórica e o quanto é real e factível?

Recorramos, como sempre, à história, sobretudo à evolução da parceria que firmamos em 1993, quando o então vice-primeiro-ministro encarregado das Reformas Econômicas chinês, Zhu Rongji, visitou o Brasil, e nos propôs uma “parceria estratégica”. 

Este termo não era incidental para os chineses, que mantinham então este tipo de relacionamento com apenas os Estados Unidos, a França e a Rússia. Para nós, ela significava uma grande gama de temas, inclusive de alta tecnologia. Foi assim que concluímos, em 1992, o primeiro acordo bilateral de tecnologia de satélites entre países em desenvolvimento: o CBERS (China-Brazil Earth Resources Satellite, em português, Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres). acordo este que hoje já se encontra na sua sexta edição, com o lançamento do CBERS 04A, em dezembro de 2019. 

‘Para os chineses, a parceria estratégica visava sobretudo os nossos recursos agrícolas e as nossas commodities para alimentar uma população já então na casa do bilhão e uma economia em expansão acelerada’

Entretanto, para os chineses, a parceria visava sobretudo os nossos recursos agrícolas e as nossas commodities para alimentar uma população já então na casa do bilhão e uma economia em expansão acelerada. Fruto disto, eles se tornariam, a partir de 2009, o nosso principal parceiro comercial, como sabemos.

Desenvolvimentos posteriores buscaram cumprir as expectativas, tanto durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso quanto do primeiro mandato de Lula, que visitou Pequim em 2004 acompanhado de 450 representantes de empresas brasileiras, levando alguns analistas brasileiros a afirmar que “a crescente relação poderia ser parte de uma reconfiguração da geografia comercial e diplomática do mundo”. Ambicioso?

Já no governo Dilma, quando esteve no Brasil para participar da VI cúpula do Brics, em Fortaleza, Xi Jinping propôs que elevássemos as nossas relações a uma ambiciosa “Parceria Estratégica Abrangente”. 

‘Na parceria estratégica, resguardam-se as diferenças político-ideológicas. Isto é fundamental para afugentar temores’

Segundo os analistas Williams Gonçalves e Lana Bauab Brito, “os chineses definem parceria estratégica como um comprometimento de longo prazo entre dois atores importantes para o estabelecimento de uma estreita relação entre um número significante de áreas… No entanto, isso não significa que não haverá diferenças entre eles, mas sim que os atores reconhecem a importância do seu comprometimento um com o outro e que estão preparados para tentar alcançar um acordo quando possível”. Ou seja, resguardam-se as diferenças político-ideológicas. Isto é fundamental para afugentar temores…

Acompanhamos posteriormente os percalços entre os dois governos durante a presidência de Jair Bolsonaro ao tempo em que a República Popular vinha ganhando grande – e complexa – proeminência na arena internacional, cada vez mais segura do seu novo status de segunda maior economia do planeta e aspirante ao “pódio”.

‘Lula e Xi elevaram a parceria ao nível de “Global”, que qualificaram de aberta, inclusiva, cooperativa e mutuamente benéfica’

Neste novo cenário, de volta ao poder, na visita que fez uma vez mais à China em abril de 2023, para celebrar o 30º aniversário da Parceria Estratégica Brasil-China e o 50º aniversário de relações diplomáticas, Lula e Xi elevaram a parceria ao nível de “Global”, que qualificaram de aberta, inclusiva, cooperativa e mutuamente benéfica.

Muita retórica e muitas declarações. Mas para onde vai a real parceria estratégica. Quais são os “handicaps” que impedem uma REAL parceria?

A principal, a meu ver, além da abissal ignorância, seguida de preconceito a respeito do país e sua história, reside no desconhecimento de grande parte da sociedade, e principalmente dos empresários brasileiros – principais interessados – a respeito do que é a China contemporânea.

‘Subjaz ainda a mitologia de “país comunista”, que setores da população e da política ainda categorizam – com viés ideológico muitas vezes distorcido e interessado’

Subjaz ainda a mitologia de “país comunista”, que setores da população e da política ainda categorizam – com viés ideológico muitas vezes distorcido e interessado – o país que congrega o maior número de milionários (privados!) do planeta. Esta visão rasteira e obtusa impede que “aggiornemos” os nossos conceitos – e revisemos os nossos preconceitos. 

O apodo “comunista” ainda contamina grande parte da nossa sociedade, até como questão de fé. E impede a análise isenta da China hodierna, até porque, queiramos, ou não, a República Popular é – sim – o nosso principal parceiro comercial; e no horizonte próximo, ou longínquo, ela estará cada vez mais presente no mundo globalizado, queiramos – e gostemos – ou não! 

Para os que a consideram como “inimigo” ideológico – ou até político, que seja -, relembro esta frase de um chinês famoso (!) – nada menos que Sun Tzu, autor de um dos livros capitais da literatura universal, A Arte da Guerra: “conheces teu inimigo e conhece-te a ti mesmo; se tiveres cem combates a travar, cem vezes serás vitorioso. Se ignoras teu inimigo e conheces a ti mesmo, tuas chances de perder e de ganhar serão idênticas. Se ignoras ao mesmo tempo teu inimigo e a ti mesmo, só contarás teus combates por tuas derrotas”…

De uma coisa tenho certeza, fruto da minha vivência na China e com os chineses. Neste momento em que o Ocidente central, sobretudo nesta era Trump, se questiona e parece desbussolado, a China demonstra firmeza e estratégia. 

Ela persegue o sonho da China – “The China Dream” – do professor da Academia de Defesa da China, Liu Mingfu, livro de cabeceira de Xi Jinping, que inicia o seu primeiro capítulo com o seguinte texto: “it has been China’s dream for a century to become the world’s leading nation…but what does it mean for China to become the world’s leading nation? First it means that China ‘s economy will lead the world. On that basis, it will make China the strongest country in the world. As China rises to the status of a great power in the 21st century, its aim is nothing less than the top – to be the leader of the modern global economy”.

Ou seja, “Há um século, o sonho da China é se tornar a nação líder mundial… mas o que significa para a China se tornar a nação líder mundial? Primeiro, significa que a economia chinesa liderará o mundo. Com base nisso, fará da China o país mais forte do mundo. À medida que a China ascende ao status de grande potência no século XXI, seu objetivo é nada menos que o topo – ser a líder da economia global moderna.”

O sonho da China não é de cunho westfaliano – não se circunscreve ao domínio de território, ou de ideologia, contrariamente à grande maioria dos hegemons ocidentais. Ela é mais ambiciosa: foca a economia global. It´s the economy, stupid”!

Preocupante? Assustador? Tem saída? Os mais sábios diriam que melhor é se juntar do que ser destruído. Confúcio disse: “Poucos saírão perdendo por serem prudentes”…(Analectos – 4.23).

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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