06 março 2025

Mais do que a paz, o que se está discutindo é a rendição da Ucrânia, diz especialista

Estratégia de guerra de atrito adotada pela Rússia contribuiu para que conflito se arraste sem vencedor aparente. Para Hector Saint-Pierre, Putin não deve abrir espaço para que demais nações europeias participem das negociações, e interesses mais amplos de russos e norte-americanos podem influenciar eventual acordo.

Funcionária da ONU apoia moradora de Kharkiv, na Ucrânia (Foto: UNOCHA/Yurii Veres)

Por Renato Coelho

Há três anos, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia iniciou o que chamou de “operação militar especial”, bombardeando instalações localizadas no território da vizinha Ucrânia. O governo de Vladimir Putin justificou a posterior invasão militar sob o pretexto de “desmilitarizar” e “desnazificar” o país vizinho, além de proteger a população de origem russa residente nas províncias ucranianas de Donetsk e Luhansk. Após a rápida progressão dos militares russos nos primeiros dias, o exército ucraniano conseguiu impedir a tomada da capital, Kiev, e desde então os dois lados se engajam neste que é o principal conflito em solo europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e que já incinerou  mais de dois milhões de residências, ou o equivalente a 10% do estoque total do país.

A Agência da ONU para Refugiados estima que mais de 10 milhões de pessoas, um em cada quatro ucranianos, estão deslocados neste momento. A maior parte dessas pessoas foi para países da Europa Central. Só nos últimos seis meses, mais de 200 mil ucranianos foram forçados a deixar suas casas no leste do país, devido à intensificação dos combates. Hoje as tropas russas ocupam uma faixa de 100 km de extensão em território ucraniano, e dominam toda a porção Leste do país, até o Mar Negro. Segundo dados das Nações Unidas, os direitos das mulheres e meninas foram os que mais regrediram no país, com os registros de violência de gênero crescendo mais de 30% durante o período do conflito.

Volodymyr Zelensky, o presidente ucraniano, recebeu lideranças europeus em Kiev nesta última segunda-feira 24, data que marcou os três anos da eclosão da guerra. Cercado por escombros na Praça da Independência, simbolizando os efeitos dramáticos do conflito, o mandatário ucraniano abandonou a moderação adotada no final do ano passado, quando dizia que a diplomacia seria necessária para pôr fim ao conflito, e destacou que pretende alcançar a paz por meio da força.

A grande virada nas perspectivas para o futuro da guerra vem das falas e ações de Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos, que desde janeiro assumiu seu segundo mandato à frente da maior potência global. Trump sacudiu a coalisão de apoiadores de Ucrânia, que inclui a União Europeia e o Canadá, ao estabelecer uma linha de comunicação direta com os russos e anunciar que irá iniciar negociações para o fim do conflito, excluindo, por enquanto, as demais potências europeias e a própria Ucrânia da mesa de conversações.

Trump já deixou claro que busca agilizar as negociações por um acordo de paz mesmo que isso signifique atender a demandas de Moscou, entre elas a anexação dos 20% do território ucraniano atualmente controlados por tropas russas e a proibição de que a Ucrânia entre para a Aliança Militar do Atlântico Norte (Otan).

Porém, a pressa dos EUA em alcançar algum tipo de tratado pode afetar a resolução final do conflito, pois um acordo de paz apressado e malfeito deixa margem para guerras ainda mais complicadas no futuro. Além disso, a anexação de territórios pela Rússia, mesmo com o aval dos EUA, viola a Carta da ONU e coloca em xeque outras tensões ao redor do mundo.

Especialista na área de segurança internacional e vice-coordenador executivo do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp,  Héctor Luis Saint-Pierre analisa o conflito que há três anos opõe Rússia à Ucrânia e a seus apoiadores, que incluem a quase totalidade das nações que integram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Entre as ações adotadas por estes apoiadores esteve a adoção maciça de sanções econômicas contra a potência eslava, com o objetivo de comprometer sua capacidade militar.

“A guerra se iniciou nesse contexto, com a Ucrânia recebendo financiamento e armamentos da Europa. A Rússia então começou uma movimentação de sua força para uma posição defensiva, uma manobra muito difícil do ponto de vista estratégico. E posicionou suas forças em uma linha defensiva, com cinco linhas de profundidade, e uma fortaleza. Esperou, então, o ataque. A Ucrânia atacou e foi desgastando suas tropas, desgastando o material bélico europeu e norte-americano”, diz.

Ele conta que a Rússia transformou seu complexo industrial militar de forma a adaptar as antigas armas da União Soviética para a realidade da guerra contemporânea. “Por exemplo, transformar bombas de gravidade em bombas dirigíveis, acrescentando apenas asas e um sistema de direção. Isso foi desgastando as forças ucranianas. As metas estabelecidas pelos militares ucranianos falharam e, no fundo, gerou-se uma carnificina. A Ucrânia perdeu muitos soldados, sua principal força. Posteriormente, a Rússia começou a avançar lentamente, cuidando das suas tropas e cercando as tropas ucranianas. É uma estratégia de longa duração que se chama guerra de atrito e desgaste”, explica.

Segundo Saint-Pierre, no  primeiro momento a indústria militar norte-americana experimentou um crescimento vigoroso, enquanto os países europeus da coalisão pró-Ucrânia se viram forçados a reformular seus orçamentos de defesa. “Isso é um processo crucial da guerra, pois a Europa também se desgastou. Se a Ucrânia tem a tecnologia de mísseis controlados por IA, a Rússia utiliza novos mísseis supersônicos de longa distância, com explosivos e velocidades assombrosas. Nesse contexto, a Rússia seguiu avançando e ganhando espaço. A Ucrânia nunca teve possibilidade de vencer essa guerra. Hoje, praticamente, mais do que um tratado de paz,  o que se está negociando é a rendição da Ucrânia”, diz.

Donald Trump mira guerras comerciais

Durante o período inicial da guerra na Ucrânia houve iniciativas para mediar o conflito, envolvendo os Estados Unidos e países europeus, mas todas fracassaram. Com o início do segundo mandato de Donald Trump à frente da Casa Branca, a abordagem norte-americana, de apoiar a continuidade do conflito, mudou em cento e oitenta graus.

“Trump anunciava que acabaria com a guerra em 24hs. Obviamente, isso não ocorreu. Mas ele está correndo com o processo, para que aconteça segundo os interesses dos EUA. Trump está vendo o quanto é difícil permanecer numa situação dessas, e que vai ser complicado querer se entrincheirar em todas as guerras pelo mundo”, diz.

O docente da Unesp ressalta a visão política conservadora e protecionista do norte-americano, cujo foco é beneficiar seu país e sua indústria. Neste sentido, a aproximação com a Rússia também tem pode atender a outros interesses, evitando desgastes políticos com um governo forte como o de Putin. Isso abre uma negociação específica entre ambos países, e ao mesmo tempo fortalece sua economia. “Com o fortalecimento econômico, Trump irá travar guerras comerciais, em especial com a China e Oriente Médio. Trump gera imprevisibilidade na geopolítica mundial, e isso deixa a Europa abandonada. Os países vão ter que se reestruturar em diversos setores para conseguir se encaixar no atual cenário”, analisa.

Putin não deve abrir espaço para a Europa nas negociações

No dia 19/2, o Canadá e os países europeus pró-Ucrânia se reuniram  para debater uma reação à aproximação entre Estados Unidos e Rússia. Porém, nenhuma medida efetiva ainda foi tomada por parte desses governos, que se ressentem por estarem excluídos das conversações, assim como a própria Ucrânia.

Zelensky defende que os aliados europeus estejam envolvidos nas negociações de paz. Ele também pediu a criação de um “Exército da Europa” durante seu discurso na Conferência de Segurança de Munique, realizada na Alemanha de 14 a 16 de fevereiro de 2025.  Na ocasião, declarou que o continente não poderia mais depender dos EUA para se proteger e que a formação de uma tropa unificada seria fundamental para que “o futuro da Europa dependa só da Europa e as decisões sobre europeus sejam feitas na Europa”.

“Eu imagino que a Rússia não vai aceitar a participação direta da Europa, Canadá e outros países [nas negociações]”, diz Saint-Pierre. “Para Putin, o conflito deve ser debatido entre as cabeças centrais, que são Rússia e EUA, já que foram os norte-americanos quem provocou a Rússia para que entrasse nessa guerra. Vários autores americanos admitiram que países vizinhos, influenciados pela Europa, iriam incomodar a Rússia. Por isso, há anos Putin fez declarações fortes sobre limitações para que países fronteiriços adquirissem determinados armamentos, ou se associassem à OTAN e à EU, por exemplo”, diz.

Este texto é uma reprodução livre de artigo publicado pelo Jornal da Unesp - https://jornal.unesp.br/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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