18 setembro 2025

Micrômegas, o Leviatã e o Príncipe – Dilemas contemporâneos das RI  

Em um contexto de crescentes desafios à sobrevivência do Estado-nação, a análise de dados mostra que o caminho mais seguro para que ele tente atingir uma maior capacidade está ligado à habilidade de adaptação de suas instituições e de seus governantes às sucessivas realidades

Donald Trump e Vladimir Putin avançam o planeta em um ambiente hostil à paz (Foto: Wikimedia Commons)

 “Savez-vous bien, par exemple, qu’à l’heure où je vous parle, 

il y a cent mille fous de notre espèce, couverts de chapeaux, 

qui tuent cent mille autres animaux couverts d’un turban, 

ou qui sont massacrés par eux, et que, presque sur toute la terre, 

c’est ainsi qu’on en use de temps immémorial ? 

(Voltaire¹)

Ao criar Micrômegas, Voltaire convida à reflexão sobre como o grande pode ser pequeno e o pequeno pode se conceber grande, dependendo da escala de comparação².

Atemporal, tal consideração se mostra instigante no quadro das Relações Internacionais, uma vez que as ações dos seus protagonistas, os Estados-nação, são concebidas a partir da noção de capacidade estatal³.

O cálculo de tal capacidade é complexo e envolve fatores tangíveis, de mensuração menos complicada, mas, igualmente, algumas fontes intangíveis, cujo cômputo se revela instrinsicamente melindroso. O corolário é que as apreciações podem divergir. E, via de regra, geralmente elas se desencontram.

‘O Estado-nação vem sendo desafiado, já há algum tempo, no que diz respeito à sua habilidade de sobreviver’

Resultado de uma transformação permanente do Überlebenseinheit (4), o Estado-nação vem sendo desafiado, já há algum tempo, no que diz respeito à sua habilidade de sobreviver. Os processos de interdependência global revelam uma situação de crise e apontam para a superação do modelo westfaliano de organização política. O objetivo é se ter uma unidade de sobrevivência com a maior capacidade relativa possível, apta a fazer valer seus interesses e valores na arena internacional. 

O Leviatã latente que permeia o Estado-nação encontra-se questionado e, com frequência, remodelado, tentando adequar os preceitos hobbesianos às novas contingências vigentes. É mister minorar a face debilitada do Micrômegas e, nesse contexto, o capital social emerge como ingrediente essencial, na medida em que ele relaciona engajamento cívico e desempenho institucional (5). 

Todavia, ao lado desse tempo longo, no qual se inserem paulatinamente as metamorfoses institucionais, há um tempo curto, pontuado pela ação premente dos governantes. Príncipes de todos os naipes afloram e, beneficiando-se de “forças do acaso”, operam como se fossem máquinas para conquistar e manter o poder. Nessa dinâmica, permanece a incerteza quanto à realização da virtù, nos termos de Maquiavel.

‘O cenário político internacional dos últimos anos acha-se marcado por uma crescente onda de conflitos armados liderados por Príncipes belicosos que governam na contramão democrática’

O cenário político internacional dos últimos anos acha-se marcado por uma crescente onda de conflitos armados liderados por Príncipes belicosos que governam na contramão democrática, atrapalhando o tráfego multilateral em voga desde o final da Segunda Guerra Mundial.

A guerra entre Rússia e Ucrânia, a peleja prolongada entre Israel e o Hamas em Gaza e, mais recentemente, as ações de Donald Trump são evidências definitivas de um meio ambiente hostil à paz. Ora, nessas circunstâncias marciais, as capacidades estatais convertem-se em elemento diferenciador entre a via da morte ou a trilha da vida. 

Diante disso, o que dizem os dados? Quais Estados-nação estão mais preparados para um cenário anti-multilateral? O aumento com as despesas militares e as providências logísticas promovidas por alguns governantes serão suficientes? 

O Gráfico 1 ilustra a média da capacidade estatal que foi construída a partir da agregação de 21 indicadores para 163 países entre 1960 e 2015.

Gráfico 1

Hanson e Sigman (2021), em artigo publicado no prestigioso The Journal of Politics, identificam três importantes dimensões para se pensar capacidade estatal: (a) extrativa; (b) coercitiva e (c) administrativa.

Esses construtos são então agregados em uma medida sintética a partir de técnicas bayesianas de redução de dimensionalidade. A linha pontilhada vermelha demarca a média da distribuição, que foi de 0,26. Temos -2,310 como o menor valor de capacidade, que corresponde à Somália em 2006; e 2,964, que indica a capacidade da Dinamarca em 2010.  

Observemos agora a distribuição da média por país, considerando apenas as dez nações com maior capacidade (top) e os dez países que completam a parte inferior do ranking (bottom).  

Gráfico 2

Os resultados evidenciam um forte padrão de disparidade internacional.

Dinamarca, Suécia e Noruega, integrantes da Escandinávia e frequentemente associadas ao modelo nórdico de bem-estar, destacam-se de forma consistente entre 1960 e 2015 como os países com maior capacidade estatal média. Esse desempenho reflete administrações públicas altamente profissionalizadas, forte legitimidade institucional e sistemas de governança inclusivos.

No extremo oposto, Afeganistão, Iêmen e Somália apresentam os índices mais baixos, o que ilustra os desafios de países marcados por instabilidade política crônica, fragilidade institucional e, em muitos casos, conflitos armados prolongados.

‘Essa polarização reforça a literatura comparada que vincula a estabilidade e a eficiência administrativa à capacidade dos Estados de prover bens públicos’

Essa polarização reforça a literatura comparada que vincula a estabilidade e a eficiência administrativa à capacidade dos Estados de prover bens públicos, ao mesmo tempo em que evidencia os obstáculos enfrentados em contextos de fragilidade estatal. 

Vejamos, em seguida, a evolução da capacidade estatal a partir da organização dos países individuais em arranjos de interesse político-econômico coletivo (Gráfico 3).  

Gráfico 3

Vários insights interessantes.

Primeiro, salta aos olhos a diferença de nível entre as séries. Na União Europeia, a média foi de 1,490. Para os BRICS, esse parâmetro foi de 0,163, quase dez vezes menor.

Segundo, o grupo dos Brics começa com a menor média de capacidade estatal, mas esse cenário muda a partir da década de 1970. Em particular, a contar de 1975, observa-se uma sobreposição das curvas e, já no início da década de 1980,  eles  começaram a exibir uma tendência de fortalecimento institucional. Considerando as estimativas mais recentes, a União Europeia exibe média de 1,76, BRICS média de 0,582.

Por fim, replicamos um dos gráficos de Hanson e Sigman (2021) que ilustra a dispersão da capacidade estatal em dois períodos específicos do tempo: 1975 e 2015. O Gráfico 4 ilustra essas informações. 

Gráfico 4

Países  com alta capacidade em 1975 exibem, em média, elevada capacidade em 2015. O coeficiente de correlação de Pearson, que mede a força da associação, é de 0,84. Ou seja, um valor relativamente graúdo.

Em suma, o que se testemunha é que, possivelmente, o caminho mais seguro para o Estado-nação tentar atingir uma maior capacidade está ligado à habilidade de adaptação de suas instituições e de seus governantes às sucessivas realidades.

A condição de Micrômegas é inerente à toda unidade de sobrevivência e necessita ser gerenciada de forma que contemple ações de cunho mais imediato e condutas de médio e longo prazos, ambas visando, pari passu, fatores tangíveis e intangíveis.

As dimensões latentes do Leviatã quando bem interpretadas e canalizadas de maneira a dar a devida resiliência ao Estado, tornam-no mais capaz – mesmo se, às vezes, menos soberano (6). Importando aqui o savoir-faire do Príncipe em proporcionar ao seu povo maior chance de ampliar a capacidade de controlar seu destino (7).  


Notas: 

Materiais de replicação, incluindo dados originais e scripts computacionais, estão disponíveis em: <https://osf.io/vc4yz/>.  

(1) Voltaire, Micrômegas, Capítulo VII, p.38, La Bibliothèque électronique du Québec, Collection À tous les vents, Volume 1307 : version 1.0. Disponível: https://beq.ebooksgratuits.com/vents/Voltaire-Micromegas.pdf (Acesso em 30/08/2025).

(2)O nome Micrômegas associa os vocábulos gregos mikros (pequeno) e megas (grande), retratando o conflito entre grandeza e limitação que compõe a narrativa de Voltaire e traduz a relatividade de toda perspectiva humana.

(3) Cf. Hanson, Jonathan and Sigman, Rachel, “Leviathan’s Latent Dimensions: Measuring State Capacity for Comparative Political Research”, The Journal of Politics, volume 83, number 4, October 2021.

(4)  O termo alemão Überlebenseinheit (unidade de sobrevivência), empregado por Norbert Elias em A Sociedade dos Indivíduos, designa os agrupamentos coletivos historicamente variáveis — como família, clã, Estado-nação — nos quais os indivíduos encontram as condições mínimas para sua existência e proteção. Cf. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

(5) Cf. PUTNAM, Robert D. Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy. Princeton: Princeton University Press, 1993.

(6) No seio da UE os Estados-nação são mais capazes frente aos parceiros internacionais. Todavia, eles são menos soberanos, na medida em que condicionam, em vários setores, seu processo decisivo ao da União Europeia. Cf. Hix, Simon & Høyland, Bjørn, The Political System of the European Union. London: Bloomsbury Academic, 2022.

(7) Cf. LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.

Marcelo de Almeida Medeiros é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP/UFPE) e Pesquisador PQ-1C do CNPq. Dalson Britto Figueiredo é professor associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP/UFPE) e Pesquisador PQ-C do CNPq.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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