01 novembro 2024

Mudança na política externa argentina – Se a moda pega…

Governo Milei demitiu a ministra de Relações Exteriores e determinou que a chancelaria adote lealdade a suas políticas em um movimento que lembra os primeiros anos de Jair Bolsonaro no Brasil e que ameaça o profissionalismo e a seriedade dos diplomatas do país

O presidente da Argentina, Javier Milei, após tomar posse (foto: Wikimedia Commons)

O presidente da Argentina, Javier Milei, enviou comunicação a todos os diplomatas e funcionários do Ministério do Exterior da Argentina tratando de um profundo processo de mudanças em curso nas políticas do seu governo, com reflexo na atuação da Chancelaria. Pede aos diplomatas lealdade às novas políticas do governo e chega a solicitar que aqueles que não estiverem de acordo se afastem. 

Nessa comunicação, Milei diz que “a Argentina está vivendo uma transformação histórica, que se reflete no espírito do trabalho dos argentinos que, depois de longos anos de frustração, decidiram retomar o caminho do crescimento e das oportunidades”. 

´O presidente da Argentina disse que a mudança de rumo do país deve se refletir no plano internacional, através do trabalho da totalidade do corpo diplomático e a participação nos foros e organismos internacionais´

O presidente da Argentina acrescentou que “essa mudança de rumo deve também se refletir no plano internacional, através do trabalho da totalidade do corpo diplomático e a participação nos foros e organismos internacionais”.

Milei continua afirmando que “a agenda 2030, embora bem intencionada em suas metas, é um programa de governo supranacional de cunho socialista, que pretende resolver os problemas atuais com soluções que atentam contra a soberania nacional e violam o direito à vida, à liberdade, à propriedade  individual. Os principais organismos internacionais se submeteram a essa agenda que obedece a interesses privilegiados; e abandonou os princípios incluídos na Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU.“

“Foram promovidas políticas coletivistas que atentam contra o crescimento econômico, violentam os direitos de propriedade e entorpecem o processo econômico natural chegando a impedir que os países mais atrasados do mundo aproveitem livremente seus próprios recursos para crescer. Devem ser valorizadas as ideias que pregam que todos os cidadãos nascem livres e iguais diante da lei, que têm direitos inalienáveis outorgados por Deus, entre os quais se encontram o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Esses princípios que definem o processo de mudança levado adiante pelo governo na Argentina são também os princípios que orientarão nossa conduta internacional. Essa doutrina da nova Argentina sustenta que a verdadeira essência da ONU é a cooperação entre as nações unidas na defesa da liberdade”.

´Nova doutrina implica que nenhum funcionário da sua administração deve apoiar qualquer projeto que estabeleça violações ao direito à vida, à liberdade e à propriedade´

Essa nova doutrina implica, por definição, segundo as instruções de Milei, que nenhum funcionário da sua administração, nem quem represente a Argentina no exterior, deve apoiar qualquer projeto, declaração, resolução ou documento que estabeleça violações ao direito à vida, à liberdade e à propriedade; ou um tratamento desigual perante a lei, “valores que são pilares desta nova administração“. 

“Não importa sob que bandeira nobre se pretenda apoiar essas violações, a República Argentina não apoiará qualquer medida que atente contra esses valores fundamentais da civilização ocidental. O protagonismo assumido pela Argentina no cenário global, como defensora dos valores republicanos das democracias ocidentais, requer um corpo diplomático comprometido com as ideias de liberdade, a disposição de trabalhar de forma coordenada para proteger os interesses nacionais. Por isso é que o momento histórico atual demanda esforço da totalidade dos funcionários e diplomatas do Ministério das Relações Exteriores, Comércio Internacional e Culto, assim como do pessoal diplomático e civil do serviço exterior da nação. Quem não se encontrar em condições de assumir os desafios que serão enfrentados no caminho adotado em defesa das ideias de liberdade, deverá dar um passo para tras”.

´Essa inusitada comunicação, porém, poderá ser utilizada para servir a interesses pessoais ou de grupos dentro do Ministério do Exterior a fim de determinar o afastamento de eventuais opositores ideológicos´

Não conheço nenhuma outra determinação presidencial nas linhas da publicada por Milei. Os funcionários de carreira certamente cumprirão as diretivas presidenciais. Essa inusitada comunicação, porém, poderá ser utilizada para servir a interesses pessoais ou de grupos dentro do Ministério do Exterior a fim de determinar o afastamento de eventuais opositores ideológicos. Não se pode ignorar que o serviço exterior argentino sempre foi muito politizado com a influência de sucessivos e diferentes grupos peronistas.

Por outro lado, a diretriz de Milei lembra as teorias negacionistas do início do governo de Jair Bolsonaro, com Ernesto Araújo a frente do Itamaraty, de lamentável memória, e que teve sua influência na formulação e execução da política externa nos dois primeiros anos bolsonaristas. 

Nesta semana, em função dessas diretivas, a ministra de Relações Exteriores Diana Mondino foi demitida por ter autorizado o voto argentino a favor da resolução das Nações Unidas que condenou mais uma vez as sanções econômicas unilaterais dos EUA contra Cuba. 

´Milei ressaltou que se opõe categoricamente à ditadura cubana e que permanecerá firme na promoção de uma política externa que condene todos os regimes que perpetuam a violação dos direitos humano´ 

Em comunicado da Presidência argentina, Milei ressaltou que se “opõe categoricamente à ditadura cubana” e que permanecerá “firme na promoção de uma política externa que condene todos os regimes que perpetuam a violação dos direitos humanos e das liberdades individuais.” 

Não satisfeito com a demissão da ministra, o gabinete presidencial informou que fará uma “auditoria” entre os servidores do Ministério das Relações Exteriores do país visando “identificar os promotores de agendas inimigas da liberdade”, o que poderá iniciar um período lamentável de “caça às bruxas”, no estilo macartista na chancelaria argentina.

Esperemos que essa política ideológica não prospere em outros países da região.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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