27 novembro 2024

O Brasil e a nova Roda da Seda

É preciso pesar os riscos e benefícios de uma aliança com a China, e vale lembrar que desde os anos 1970 a economia ajudou a pautar o “pragmatismo responsável”. São os nossos interesses nacionais que devem balizar o nosso relacionamento com outras nações

Jantar oferecido pelo presidente Lula ao presidente da República Popular da China, Xi Jinping (Foto: PR)

O Estadão publicou recentemente na sua parte editorial um artigo que replica matéria do The Economist sobre a participação do Brasil no projeto da Belt and Road Initiative (BRI), a Nova Rota da Seda promovida pelo governo da China. Segundo a matéria, “uma eventual adesão pode até parecer bom negócio, mas é preciso ponderar se isso é realmente necessário, e se o custo geopolítico de um alinhamento desse tipo com a China não será alto demais.”

A questão é não somente oportuna, mas fundamental para balizarmos os grandes vetores da inserção do Brasil no processo de globalização que se está conformando neste século. Para tanto, é importante revisitarmos a história a fim de chegarmos a uma (qualquer) conclusão sobre qual destino a Belt and Road Initiative nos propiciaria.

Então recorramos a ela. 

A este respeito, sabemos que, alimentada pelo comércio com o Ocidente através da Rota da Seda, a China imperial foi a principal economia do planeta até meados do século XIX. Sôfrega por produtos – seda, especiarias, porcelanas, etc. – que de lá chegavam para referendar a opulência das suas elites, a Europa, com a Inglaterra à frente, não conseguia contrabalançar com a prata que partia das Américas a balança de comércio que lhe era profundamente deficitária. Diante disto, os ingleses decidiram promover o contrabando espúrio do ópio, tornando a China um “país de drogados”. 

‘As Guerras do Ópio que inauguraram um período que os chineses chamam de “o século das humilhações”, uma das causas do ideário comunista e das convulsões políticas que o país viveu’

Confrontada com a resistência das autoridades do império chinês, a Corte de Saint James promoveu as duas chamadas Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860), que inauguraram um período extremamente conturbado, que os chineses chamam até hoje de “o século das humilhações”, uma das causas motrizes da emergência do ideário comunista e de todas as convulsões políticas que o país viveu ao longo do século passado. Até que, à morte de Mao Zedong, em 1976, Deng Xiaoping abriu o país para o exterior com a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZPE´s), rompendo o isolamento multissecular da China.

A partir de então as autoridades chinesas, com o Partido Comunista à frente, passaram a focar o desenvolvimento econômico como prioridade, sobretudo após a morte de Mao. Mantiveram, porém, os jargões comunistas – e a foto de Mao no muro da Cidade Proibida – como garantias de que o processo não descarrilaria.

Isto porque as raízes ancestrais confucionistas da sociedade chinesa condicionam o governante a observar o “Mandato do Céu”, ou seja, que atenda aos interesses da população, legitimando-o no poder.

Com a aceleração do processo de desconstrução do radicalismo maoísta (ainda que mantendo seus referenciais teóricos…), fruto da abertura e da crescente integração do país ao exterior e às cadeias mundiais de comércio, a partir do final dos anos 1970 – em 2020, a China foi o maior exportador do planeta (US $ 2,49 trilhões, ou 13,3% do total mundial) e o segundo maior importador, em 2019 ( US$ 2,06 trilhões) – ela decidiu se reinventar. 

Dois vetores, principalmente, estruturaram os seus projetos de desenvolvimento e o seu espraiamento impressionante pelo mundo afora neste primeiro quartel de século, inclusive na América Latina: 1) a Nova Rota da Seda e 2) o Plano China 2025, através dos quais o Governo Central tem-se empenhado em “aggiornar” o país.

‘A China estabeleceu um conjunto de metas destinadas a fortalecer a economia através do plano que priorizou dez setores de tecnologia de ponta que atualizarão, consolidarão e alavancarão a sua indústria’

No XIV Plano Quinquenal da China, de 2015, ela estabeleceu um conjunto de metas destinadas a fortalecer a economia através do plano “Made in China 2025”, que priorizou dez setores de tecnologia de ponta que atualizarão, consolidarão e alavancarão a sua indústria, transformando a República Popular numa potência tecnológica – acreditam os chineses – capaz de influenciar padrões, cadeias de suprimento e de valor globais: a tecnologia 5G e os automóveis elétricos BYD são apenas alguns exemplos deste novo “status quo”.

A segunda meta foi reconstruir a antiga Rota da Seda que fez a sua fortuna através dos séculos, interligando três continentes: a Ásia, a Europa e a África. Porém desta feita não mais no lombo dos camelos e nos navios que cruzavam o Oceano Índico, senão através de uma rede de sistemas tanto tecnológicos quanto empresariais e financeiros, lançando mão dos bilhões de dólares das reservas que ela acumulou nesse processo.

Aí chegamos à América Latina.

Segundo a Economist, “um dos projetos principais recentes é um grande porto em Chancay, no Peru, no qual a Cosco, maior empresa de transporte marítimo chinesa, vai investir em parceria com uma empresa peruana cerca de US$ 1,3 bilhão, para o desenvolvimento da infraestrutura portuária. Por ali devem ser escoados rumo à Ásia desde materiais para a transição energética, como o lítio, a alimentos e produtos industrializados. O objetivo é óbvio: encurtar em um terço o tempo médio que os produtos da região levam para chegar ao Oriente”.

‘Um dos objetivos paralelos da Nova Rota da Seda é manter a região, sobretudo a América do Sul, como um dos vetores para o incremento do seu comércio mundial’

A reportagem anota ainda que um dos objetivos paralelos é manter a região, sobretudo a América do Sul, como um dos vetores para o incremento do seu comércio mundial. Este cresceu, na região, de US$ 18 bilhões, em 2002, para US$ 450 bilhões, em 2022! 

Desta forma, a RPC já superou os EUA como o principal parceiro comercial de Brasil, Chile, Peru, entre outros países. Só no Peru os chineses investiram cerca de US$ 24 bilhões nos setores de mineração, energia e transportes. Entretanto, no caso da América Central e do México, a sua presença sofre a concorrência da política do nearshoring americano.

E chegamos ao Brasil. E à pergunta que não quer se calar: nos interessa integrar a BRI – e para tanto algumas empresas chinesas instaladas no nosso solo estão concentrando seus investimentos em portos e rodovias – e aderirmos a este processo, com seus bônus e os seus ônus? Constituiria isto, em definitivo, uma real “ameaça”, tanto política quanto territorial, como acredita parte radical da nossa população?

‘Não notei em 16 anos de convívio na China e nem com os temas chineses, qualquer empenho de Pequim em “converter” outros governos ao seu credo. A ela interessam as questões econômicas e comerciais’

Um destes paradigmas estratificados são os fatores ideológicos envolvidos num processo de “aliciamento” pelos comunistas. Neste ponto, lanço mão da minha experiência de campo na China e nos vários países asiáticos nos quais servi ao longo dos meus 16 anos na Ásia: não notei neste tempo todo de convívio, nem na China e nem com os temas chineses, qualquer empenho de Pequim em “converter” outros governos ao seu credo. A ela interessam as questões econômicas e comerciais. 

Vejo, na contracorrente, temor de alguns de nós, brasileiros, de sermos abduzidos pelo “comunismo chinês”. Embora seja cada vez mais difícil para mim entender o que seja “comunismo” no país que abriga o maior número de bilionários do planeta.

Distopia ideológica? Ameaça real? Quais seriam as vantagens e as desvantagens dessa ameaça de “contaminação” por valores que, no fundo, no fundo, são estranhos à nossa cultura? 

Recorro sempre à nossa história recente, quando, em 1974, em pleno governo Geisel, o Brasil militar transferiu o reconhecimento do país “China”, de Taiwan para o Continente, e foi o primeiro país a reconhecer o governo marxista de Agostinho Neto em Angola. Nossos interesses, comerciais, sobretudo, nos mostraram esse caminho. O título que se deu a essa política foi “pragmatismo responsável”, cunhado pelo maior chanceler brasileiro no século passado: Antonio Azeredo da Silveira! Ou, mimetizando Deng Xiaoping – sim, ele mesmo, chinês comunista: “não importa se o gato é preto ou branco desde que cace ratos”. Coincidíamos, então.

Corolário: São os nossos interesses nacionais que devem balizar o nosso relacionamento com outras nações, “as simple as that: It´s the economy, stupid”… 

Mantemos a nossa integridade política e civilizacional e nos lançamos na aventura universal.

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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