O ‘negacionismo’ de Israel face ao direito internacional
A forma como diferentes governos israelenses tratam o direito internacional, sobretudo no que se refere à gestão de assuntos de segurança, revela um sistemático desdém às normas internacionais
No dia 28 de maio, o jornal britânico The Guardian publicou uma reportagem denunciando as condutas nocivas feitas por Israel contra o Tribunal Penal Internacional (TPI). De acordo com o texto, o serviço de inteligência israelense violou o direito internacional de diversas formas, que vão desde espionar a corte até hackear seus sistemas; o intuito era frustrar investigações contra seus nacionais. Segundo o jornal britânico, as operações forneceram informações cruciais para Benjamin Netanyahu a respeito dos passos tomados pelos procuradores do TPI nas investigações contra seu país.
No governo atual, o desrespeito ao Estado de Direito é um processo que vem acontecendo também em âmbito doméstico. Pouco antes dos atentados terroristas do Hamas, as tensões políticas em Israel estavam atingindo nível crítico justamente porque Netanyahu estava buscando colocar em execução um plano para retirar a independência da corte constitucional do país. Se o primeiro-ministro estava disposto a atacar o Estado de Direito em âmbito doméstico, nada mais coerente do que o fazer igualmente no plano internacional.
A forma agressiva como o governo Netanyahu vem reagindo a qualquer crítica que surja decorrente da operação de em Gaza tem feito com que analistas internacionais comecem a questionar se Israel estaria caminhando para se tornar um pária internacional. Em primeira análise, essa é uma interpretação exagerada, dado o grande apoio que o Estado tem das potências ocidentais, notadamente os Estados Unidos – mas não só eles. Se apontar Israel rumo a uma “pariarização” é algo precipitado, parece ser menos controverso afirmar que o Estado Israelense age com uma espécie de negacionismo face às normas internacionais.
O papel do governo Netanyahu como agente negador do direito internacional é inquestionável. Não obstante, a contestação ao direito internacional por parte de Israel está longe de ser um fato isolado do atual governo. A forma como diferentes governos israelenses tratam o direito internacional, sobretudo no que se refere à gestão de assuntos de segurança, revela um sistemático desdém às normas internacionais. Há fartos exemplos disso.
Um dos casos mais paradigmáticos dessa não conformação envolve a questão nuclear. No direito internacional, o principal instrumento legal que disciplina assuntos nucleares é Tratado de Não-Proliferação de 1968 (TNP). O acordo traz dois grupos distintos, o dos países legalmente reconhecidos como nuclearizados, os atuais cinco membros permanentes do Conselho de Segurança; e os não-nuclearizados – todos os demais. No entanto, é de conhecimento geral que há outros quatro países detentores do armamento para além dos membros permanentes: Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel.
Nenhum dos três primeiros esconde o fato de possuírem armamentos nucleares; Israel, no entanto, além de rejeitar qualquer tratado internacional que verse sobre o assunto – apenas Israel e Paquistão não são partes do TNP, por exemplo – adota a chamada política de opacidade nuclear: evita revelar se possui ou não armas desse tipo. Essa dubiedade singular do Estado israelense revela claro desdém perante a sociedade internacional.
O descompromisso israelense com regimes de desarmamentos não se restringe à seara nuclear. Na verdade, essa parece ser a regra, não a exceção. Israel também não é parte dos dois outros regimes mais importantes sobre armas de destruição em massa: o regime sobre armas biológicas, centrado na Convenção sobre Armas Biológicas (1972), e o referente a armas químicas, centrado na Convenção sobre Armas Químicas (1992). Para se ter uma ideia, todas as demais potências militares globais são partes de ambos, sem exceção.
No âmbito do direito internacional, outros regimes mais recentes buscaram disciplinar legalmente a produção, armazenamento e comercialização de certas armas com grande potencial de danos a civis. Três desses regimes são de maior destaque: o que traz normas referentes a minas terrestres – Convenção de Ottawa (1997 –; o que trata das munições agregadas, as chamadas cluster bombs – Convenção de Oslo (2008) –; bem como o que busca regular o comércio de certas armas convencionais (2013). Assim como no caso dos regimes sobre armas de destruição em massa, Israel está ausente de todas essas estruturas normativas.
Quanto ao TPI, já é de se imaginar que, dadas as condutas do Estado israelense face à corte, que ele não faz parte do Estatuto de Roma. É sintomático ver o Estado que nasce justamente após o Holocausto rejeitar a jurisdição de uma corte criada para julgar indivíduos por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio.
Negar ser parte de tratados internacionais, não obstante demonstrar um claro descompasso com a ordem internacional estabelecida, é um direito soberano dos Estados. Contudo, quando tal postura passa a ser sistemática, não é mais exagero taxar determinado Estado de uma espécie de “negacionista”.
Esse rótulo fica ainda mais evidente quando o Estado não apenas se abstém de vincular-se a acordos, como age nocivamente contra instituições adjudicatórias internacionais, como Israel vem fazendo não só com os ataques ao TPI, mas também menosprezando decisões da Corte Internacional de Justiça (CIJ) voltadas ao conflito em Gaza. O governo Netanyahu chegou a adjetivar as últimas decisões da CIJ de “falsas, ultrajantes e nojentas”.
É interessante comparar Israel à postura brasileira no que concerne ao direito internacional. Dois países não poderiam ser mais diferentes nesse sentido. O Estado brasileiro faz parte de praticamente todos os compromissos internacionais mencionados neste texto. Mais do que isso, a própria identidade de política externa brasileira perpassa o fortalecimento do direito internacional. O Brasil, por exemplo, não só aderiu ao Estatuto de Roma, como constitucionalizou sua vinculação ao tribunal por meio de emenda constitucional (§4º, art. 5º).
O ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer atribui o vínculo ao direito internacional ao processo de construção histórica da diplomacia nacional, fortalecida por figuras influentes como Joaquim Nabuco, Rio Branco e Rui Barbosa.
O ex-chanceler atribui esse vínculo a uma matriz grociana da política externa do país, diferenciando-a, nesse sentido, tanto de um realismo puro, como de um idealismo ingênuo. Para o Brasil, o direito internacional é tanto um instrumento político para Estados sem excedentes de poder, como um fator civilizador das relações internacionais, um elemento estabilizador basilar para a manutenção da ordem internacional.
Lafer ilustrou bem as origens da visão brasileira do papel direito internacional por meio de trecho do famoso discurso de Rui Barbosa na Haia: “Eis a política, eis o direito internacional. Como separá-los? A política transformou o direito privado, revolucionou o direito penal e fez o direito constitucional. Ela é a vida dos povos; ou é a força ou é o direito; a civilização ou a barbárie; a guerra ou a paz”.
Mesmo passando por seu período de maior desafio desde o fim da Guerra Fria, o direito internacional continua sendo um pilar essencial para evitar – como dito por Barbosa – a barbárie. Infelizmente, esse instrumento essencial para a manutenção da ordem internacional precisa conviver com detratores. Contudo, é justamente em momentos de maior instabilidade como este que vivemos que os fiadores do direito internacional, tal qual o Brasil, são ainda mais importantes.
Se a contestação ao direito internacional não é uma novidade, o mundo em que as contemporâneas contestações ocorrem não é mais o mesmo. Estamos no sistema internacional mais diversificado da história, com quase 200 países independentes, sendo a grande maioria deles Estados de menor poder relativo. A maior parte desses Estados, assim como o Brasil, entende que o direito internacional – não obstante sua fragilidade inerente – é um instrumento central de proteção do mais fraco. Nesse sentido, negadores tenderão hoje a ter maiores custos políticos para atacar as a ordem jurídica internacional do o tiveram no passado – isso mesmo em um mundo rumando a uma nova Guerra Fria.
Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro "Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares".
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