O que nos aproxima da África?
Estudo busca identificar um padrão na inserção brasileira no continente africano diante de sua histórica oscilação política a fim de ajudar o país no retorno ao continente após anos de uma diplomacia desengajada. Dados indicam a importância da recente aproximação em espaços multilaterais, como os organismos internacionais regionais
Estudo busca identificar um padrão na inserção brasileira no continente africano diante de sua histórica oscilação política a fim de ajudar o país no retorno ao continente após anos de uma diplomacia desengajada. Dados indicam a importância da recente aproximação em espaços multilaterais, como os organismos internacionais regionais
Por David Beltrão Simons Tavares de Albuquerque*
A Política Externa brasileira na África no século XX é a história da oscilação e do conflito. Desde o início do processo de descolonização africana, a política brasileira é influenciada por estratégias pendulares. Haveria, nesse sentido, algo que seja permanente dentro dessa oscilação? A ironia histórica é que as reaproximações e afastamentos com a África nunca são fatos totalmente inéditos, pois o Brasil nunca é realmente um estranho na África.
Engraçado relembrar que o embaixador Alberto da Costa e Silva, e decano dos estudos africanos no Brasil, no seu livro Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África” (2011), narra um fato que aconteceu com ele na Nigéria. Ele foi questionado por um jornalista: “Brazilian, what are the meanings of ‘f. da p.’, ‘merda’ and ‘sua besta’? Are they bad words?”. O embaixador, obviamente, respondeu: “ — São”. O repórter riu e então revelou que o pai o chamava assim. O pai dele, provavelmente, foi um dos “brasileiros”, ex-escravos que foram à África após a Revolta dos Malês em 1835 ou após a abolição da escravidão no Brasil.
O objetivo da minha pesquisa é identificar um padrão na inserção brasileira no continente diante dessa histórica oscilação. Minha esperança é que isso ajudaria o Brasil no retorno ao continente após os últimos anos de uma política externa low profile e, no futuro, para que essa oscilação seja menor.
Historicamente, por exemplo, a nomeação de Raimundo Souza Dantas para Gana em 1961, um ano após o Ano da África, é o retrato inicial desse conflito, haja vista ter criado resistência entre os diplomatas brasileiros e ter ficado isolado quando instalado em Acra, apesar da fama de ter sido o primeiro embaixador negro na África. Era uma política muito mais discursiva do que prática (DÁVILA, 2011; GARCIA, 2000).
Logo após o golpe militar, em 1964, houve uma reorientação da política externa brasileira para a África tanto no discurso quanto na prática. Os governos dos militares Castello Branco (1964-1967) e Costa e Silva (1967-1969) tiveram pautas eminentemente econômicas, como a ida de missões comerciais, dentro de uma lógica de segurança, haja vista o temor brasileiro da criação de países socialistas na região. As relações desses dois governos eram pautadas pela defesa ao colonialismo europeu e pelos laços luso-brasileiros (VISENTINI, 2004). Foram políticas bem tímidas.
O outro extremo do pêndulo nos governos militares é atingido no governo de Ernesto Geisel (1974-1979), representado pelo chanceler Azeredo da Silveira na política externa brasileira do Pragmatismo Responsável e Ecumênico. Como se pode inferir pelo lema dessa política externa, o adensamento e diversificação de parcerias era o mote. É verificado, nesse período, um discurso e prática sem ambiguidades a favor dos territórios portugueses na África, como o reconhecimento da independência de Guiné-Bissau antes do fim das negociações com Portugal, em 1974.
O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola, em 1975, reconhecendo o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), em discordância com os Estados Unidos, que apoiavam a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Ou, como afirma o embaixador Ovídio de Andrade Melo, “exatamente no momento em que surgiu o novo país, no primeiro segundo do dia 11 de novembro de 1975 ” (MELO, 2009). No mesmo ano, foram reconhecidos os governos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe. Esses atos fizeram com que o Brasil melhorasse as suas relações com a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e seu líder, Samora Machel, os quais tinham resistência ao Brasil, haja vista o antigo apoio brasileiro a Portugal.
O primeiro embaixador em Moçambique (1977), o “Embaixador Vermelho” Ítalo Zappa, intermediou as primeiras relações do Brasil com Moçambique, e assim nasceram os primeiros projetos de cooperação econômica e social entre os países (VISENTINI, 2004; PENNA FILHO; LESSA, 2007; ABREU; LAMARÃO, 2007; DÁVILA, 2011; ARENAS, 2019). Após esse período, por motivos internos e externos ao país, o Brasil entrou em um novo período de afastamento parcial ou total do continente africano.
As relações somente voltam a ficar mais próximas no governo de Luíz Inácio Lula da Silva (2003-2011), o qual fez uma mudança abrupta na política externa brasileira para a África. O presidente permaneceu 55 dias dos seus dois mandatos em solo africano. Ele e o chanceler Celso Amorim (2003-2011) viajaram para o continente africanos uma vez a cada ano do mandato.
Houve concertações multilaterais como o fórum de diálogo Índia, Brasil e África do Sul (IBAS), de caráter político, estratégico e econômico; o BRICS, agrupamento entre o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Esse último entrou formalmente em 2011; a Cúpula América do Sul – África (ASA), criada em 2006, após o primeiro encontro em Abuja, Nigéria. A Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) também foi usada como lócus importante de aproximação. O Brasil foi protagonista em todos esses arranjos. A importância desses foros simultâneos é que eles reforçam mutuamente a inserção internacional do Brasil. Por exemplo, se não fosse por essa aproximação, dificilmente seriam eleitos José Graziano para diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2012, e Roberto Azevedo à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2013.
Na minha pesquisa do mestrado, por meio do Qualitative Comparative Analysis Fuzzy Set (QCAFs), eu ajudei a confirmar o que outras pesquisas qualitativas e quantitativas já afirmavam, qual seja, que o Brasil historicamente tem uma proximidade com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). A busca, nesse sentido, por uma característica comum, a língua portuguesa, por meio da CPLP, demonstraria uma escolha pragmática de reinserção no continente (ALBUQUERQUE, 2018).
A criação da CPLP, em 1996, representou a oportunidade de o Brasil se reaproximar, por meio de um mecanismo institucional, desses países. O interesse brasileiro na África é, em princípio, extremamente concentrado nos Estados de língua portuguesa, representado pelo caráter histórico e cultural, o que poderia gerar dúvidas se a busca pelo continente deve-se ao seu nível de pobreza ou se é em razão da localização da maioria dos outros países lusófonos (ROWLAND, 2008; ALBUQUERQUE, 2018).
No doutorado, eu tento identificar os fatores responsáveis por uma difusão dos projetos de cooperação do Brasil no continente africano. Inicialmente localizados nos PALOP, há uma distribuição temporal e geográfica dos projetos de cooperação no continente africano para os países africanos de língua não-portuguesa. A estratégia do Brasil, portanto, teria repercutido nos Estados vizinhos aos PALOP e, depois, para o resto da África. Eu identifiquei a possibilidade desse fenômeno quando observei que havia inicialmente uma concentração de projetos nos Estados de língua portuguesa. A partir de 2005, no entanto, um grande aumento no número de projetos passou para os Estados da África não-portuguesa, o que corroboraria com a hipótese sugerida.
A África portuguesa, nesse sentido, foi o movimento inicial do Brasil dentro de uma estratégia de inserção no continente africano. Inicialmente, foram projetos modestos que, após os anos, se desenvolveram à medida que o Brasil amadurecia a sua política africana. O que explica, portanto, uma maior velocidade de adesão dos Estados africanos a demandar os projetos de cooperação do Brasil? Quais fatores são capazes de influenciar um país a aderir a um projeto de cooperação com o Brasil?
Eu testei alguns fatores para responder essa pergunta, quais sejam, tempo (anos) até o primeiro projeto; proximidade geográfica entre países africanos de língua portuguesa e países africanos de língua não-portuguesa; comércio exterior entre os países africanos; associação conjunta em instituições (joint membership) em países africanos; qualidade das instituições nos países africanos; número de adesões anteriores aos projetos por região; e qualidade das instituições nos países africanos.
Os resultados preliminares, por meio da análise do método de análise de sobrevivência, do QCAFs, como meta-análise e de um estudo de caso com cinco países africanos com a variável balança comercial, indicam um caminho para pesquisas futuras. No geral, a variável geográfica indica, em todas os testes realizados, que não há nenhuma relação com a difusão dos projetos brasileiros na África. Isso deveria ser investigado se foi um acidente ou se outros fatores regionais, como os institucionais, foram mais relevantes e acabaram substituindo-o. Como dito, é um resultado bastante contraintuitivo.
Uma variável, porém, que teve um resultado interessante foi a de qualidade institucional e deve ser mais investigada. Enquanto a simples qualidade institucional do país não é relevante para ter um projeto, a variável que aborda a semelhança institucional entre os PALOP e os países não-PALOP é positiva e relevante para o fenômeno na análise do modelo de sobrevivência, mas não no QCAFs. A variável institucional internacional, no entanto, foi positiva e relevante no QCAFs e em 2 de 3 dos modelos de análise de sobrevivência usados. Isso pode demonstrar a convergência internacional desses países em nível regional.
Os dados, até o momento, indicam a importância da recente aproximação dos países africanos em espaços multilaterais, como os organismos internacionais regionais, o que certamente teria criado uma convergência. O Brasil pode se aproveitar desse fenômeno para um eventual retorno.
David Beltrão Simons Tavares de Albuquerque é doutorando em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco.
Referências Bibliográficas
ABREU, Alzira Alves de e LAMARÃO, Sérgio. Personalidades da Política Externa Brasileira. Brasília: FUNAG, 2007.
ALBUQUERQUE, D. B. S. T. de. A dinâmica decisória da Política Externa : as condições à Cooperação brasileira na África (2003-2010). 2018. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2018.
ARENAS, Fernando. África lusófona: além da independência. São Paulo: Edusp, 2019.
DÁVILA, Jerry. Hotel Trópico: o Brasil e o desafio da descolonização africana (1950-1980). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
GARCIA, Eugênio. O pensamento dos militares em política internacional (1961-1989). Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: vol. 40, n. 1, 1997.
LESSA, Antonio; PENNA FILHO, Pio. O Itamaraty e a África: as origens da política africana do Brasil. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 39, 2007.
LIMA, João Antônio dos Santos. A cooperação internacional sul-sul e a difusão de políticas: uma análise exploratória das políticas coordenadas pela Agência Brasileira de Cooperação. 2014. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.
MELO, Ovídio de Andrade. Recordações de um removedor de mofo no Itamaraty: (relatos de política externa de 1948 à atualidade). Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
ROWLANDS, Dane. Emerging Donors in International Development Assistance: a synthesis report. International Development Research Centre, 2008.
SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. 5 e. d. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
VISENTINI, Paulo G. Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro. 2ªed. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2004
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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